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segunda-feira, 23 de maio de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 59





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António Cagica Rapaz

A chuva cai, fria, na noite invernosa. Ao longe, o mar, soturno e cavo, vendaval dos antigos, ondas enroladas na nossa memória dia a dia mais fugidia e incerta, desde que ancorámos a aiola no Lar dos idosos onde esperamos o fim...

As noites são intermináveis, dorme-se pouco nestas idades. De casa trouxe um relógio de pêndulo, movimento regular, monótono e triste que embala e acentua a solidão, a impressão de eternidade antecipada, de suspensão do tempo que não passa, que não volta, que nos angustia e confunde, atarantados no vazio da vida. Tempo que nos escapou irremediavelmente, tudo é passado, tudo se foi no rasto ondulante que a barca foi deixando, aiola a que se cortou o cabo e foi à via na imensidão do mar, na pretidão lancinante da noite, envolta em franjas de bruma. Aiola destroçada que deu à costa à porta do Lar, última corrida, última viagem no carrocel da vida, longe do tempo em que afrontávamos o mar e o vento, de olhar firme e de mão segura, chegávamos a casa com o balde cheio de peixe, ao cair da noite, o tacho ao lume e os miúdos na rua, a brincar. Era o tempo do banco à porta, da luz filtrada das tabernas a recortar-se no empedrado da rua, da guitarra suplicante, da voz de queixume, do mar prateado de luar. Éramos felizes e não sabíamos. Éramos novos, vigorosos, lutadores de mangas arregaçadas, sensíveis às coisas simples e boas, uma caldeirada a bordo, um passeio à Arrábida, sardinhada à porta, a magia da noite de Natal, rancho melhorado e a família à volta, o fervor da procissão do Senhor das Chagas, a inocente fascinação dos carrinhos, do carrocel oito, do poço da morte, tudo ali a dois passos do que é hoje o Lar. O pêndulo, que era da patroa, coitada, já lá está, continua infatigável, noite e dia, vida e morte neste poço onde só estamos à espera dela, questão de tempo. Os filhos? Os filhos têm a sua vida e essa não passa por aqui.

A emoção secou em nós, fomos morrendo aos poucos ao longo da vida, em cada desencanto, em cada desalento, em cada fracasso, em cada frustração, em cada incompreensão, em cada desgosto, em cada mágoa.

Somos como uma casa grande cujas janelas se vão fechando, umas atrás das outras, até tudo ficar na penumbra, fechado como as nossas almas, como os nossos olhos que perderam a vontade de ver, como os nossos ouvidos insensíveis aos apelos.

Em cima da mesinha estão os comprimidos, amarras que nos prendem ao cais derrisório da vida. Na quietude sombria da noite, por vezes, há no ar uma vertigem de tentação. Os frascos parecem acompanhar o movimento cadenciado do pêndulo, barca dolente baloiçando de mansinho na doca. E o céu parece mais perto. Mas não, acaba-se por pensar noutra coisa, muda-se de ideias, pinta-se a noite de azul, busca-se o sono.

Logo à tarde, no jardim, lá estaremos para reconstruir desajeitadamente os quartéis da nossa infância, desenterrar velhas rábulas, saborear o prazer da prescrição de malandrices distantes, rir com os poucos dentes que nos restam, em devaneios de uma sensibilidade mutilada.

De vez em quando toca a finados e, nessas alturas, uns fazem-se ainda mais surdos, outros desentendidos. Alguns filosofam com ansiedade mal disfarçada e há sempre quem procure gracejar numa tentativa patética de exorcizar o medo.

Mas, apesar de tudo, na frescura da manhã, acabamos por abrir a janela e procuramos no céu uma réstia de esperança. Por isto, por aquilo, sei lá, será que alguém sabe? Talvez, apenas, porque o mar chama por nós...

1996

1 comentário:

  1. O blogue "Boa Noite, Ó Mestre!" agora está aqui:

    http://boanoitemestre2.blogspot.com/

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