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quarta-feira, 6 de abril de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 53


Regresso*
António Cagica Rapaz
O Carlinhos da Rã entrou ofegante no Café Central naquele fim de tarde tranquila, lusco-fusco preguiçoso, com a noite a ameaçar cair e o dia a agarrar-se às nuvens ténues que beijam o mar lá longe, em equilíbrio adivinhado sobre a linha do horizonte.
De boina abundante enfiada na cabeçorra, o Carlinhos descera a correr a escada da Repartição de Finanças onde pairavam a sombra esquiva do regedor Ferreira, vulgo Badejo, e a aristocrática elegância do Professor Artur Maria da Silva Costa.
Nós, rapazolas centralistas, estávamos como de costume ancorados ao bilhar da frente, depois de uma voltinha ao Espadarte, um olho à lota e um salto à loja do mestre Adelino. Era a nossa peregrinação, o nosso triângulo das Bermudas onde nos perdíamos entre as páginas d’A Bola, as tacadas do bilhar, a sedução da esquina que nos amparava, o conforto dos poiais das montras, o ar bravio que nos chegava do jardim, do campo do Desportivo, da serra, do mundo que se abria naquela rua do cinema que era o berço da evasão.
E o Carlinhos, já lá chegamos, caía-nos em cima para nos interrogar com febril excitação:
– Vocês não deram pela minha falta?
Foi assim, tal e qual, e nós ficámos embaraçados, confundidos, pesarosos porque, em boa verdade, nenhum de nós podia afirmar ter sentido naquele dia, naquela tarde calma, a ausência do Carlinhos da Rã.
Ver aparecer o Alfredo ou o João Vai-Vem quando jogávamos à bola entre o Grémio e o Central, isso causava-nos certa emoção. Ir ao baile à Quintola e apanhar uma tampa enchia-nos de vergonha. Cair na esparrela do Júlio Mouco era vexame insuportável.
Agora passar uma tarde sem ver o Carlinhos, de facto não era coisa que nos traumatizasse por aí além.
E ficámos mudos como peixes estendidos na lota a ouvir a cantilena do Alfredo Filipe. E não percebíamos sequer a razão daquela pergunta. Estaria o Carlinhos a fazer uma sondagem sobre a sua popularidade? Poderia ele medir o afecto que nos inspirava?
Teria preocupações de ordem metafísica o nosso Carlinhos batráquio?
Nada disso. Sucedera apenas que o Carlinhos tinha ido com a mãe a Lisboa e talvez quisesse verificar se a vida em Sesimbra, no Central, não teria parado durante a sua ausência. Não, Carlinhos, a vida não pára seja para quem for que se ausente. Por umas horas para ir a Lisboa ou para sempre no cemitério, no mar profundo ou algures. Os matraquilhos do Lopes continuam a trincar bolas e a disparar tiraços. O Mestre Adelino não deixou de criticar o Otto Glória entre duas barbas e uma desbastadela a preceito. O Hernâni foi à cave do Tio Chico da Cooperativa para o seu ping-pong antes de vir servir uma bica escaldada ao imenso Duque. O Damião distribuiu as fichas do sintético, o António, na mercearia do senhor Arménio, vendeu dois quilos de sabão de amêndoa e três litros de azeite espesso enquanto o Orlando largava o bilhar para ir fazer um frete à doca.
Não, Carlinhos, a vida não pára e não demos pela tua falta. Pela nossa falta dão aqueles que de nós gostam e mesmo esses têm a sua vida para viver. Há dezanove anos fui mais longe do que Lisboa, abalei para Paris e levei comigo o Central, a doca, a fortaleza e o farol. Na fronteira, quando me perguntaram se tinha alguma coisa a declarar, era difícil dizer que levava aquela carga toda mais as redes do Pai Bernardo, o gelo do Chanoca, as barracas do tio Abel, o carrocel oito, os bancos do jardim, a porta da capela, o campo do Desportivo, a escola Conde de Ferreira, a areia da praia e o cântico das gaivotas.
Mais difícil ainda teria sido dizer que ia à procura do Carlinhos da Rã que se ausentara para parte incerta numa tarde pálida pela calada do tempo.
Lá longe, dei por mim a folhear o álbum da memória com a preocupação de conservar as recordações como se guardava a albacora para os invernos intermináveis. Poderá ter sido uma maneira de não deixar que me esquecessem, de fazer com que dessem pela minha ausência. E longe, sentia-me mais perto, percorria ruas, becos e recantos da nossa terra, mergulhando nas entranhas do tempo, trazendo ao de cima o que me parecia ser importante, interessante, valer a pena.
Ver e sentir Sesimbra de longe é uma abordagem tendenciosa e parcial porque escolhia caminhos e tonalidades, situações e pessoas levado por uma concepção da vida e das coisas que é apenas a minha. E o que para mim é belo ou bom pode ser detestável para o vizinho do lado. Depois, a visão que temos lá de longe, deforma, retoca, altera, reconstrói uma realidade que o tempo por si já se encarregou de transformar sem precisar da nossa ajuda.
Por outro lado, em cada visita rápida, apercebia-me da distância entre o universo relativamente poético e idealizado que eu tentava recriar e a vida, os valores, a realidade.
Diz o poeta que melhor que viver é sonhar. E é verdade que, ao longo destes dezanove anos, eu sonhei, reconstruí quadros do presépio de Sesimbra com uma espiritualidade semelhante à que nos invadia nas noites de Natal, na Missa do Galo, quando olhávamos o nosso próximo com uma ternura sentida e uma fraternidade desusada.
O tempo e a distância trazem-nos, com a saudade, imagens ideais, o melhor da montra do Zé do Lima, os brinquedos mais bonitos.
Nas minhas visitas ocasionais fui descobrindo uma outra realidade mas, no fundo, se as coisas são o que são, elas poderão também ser o que nós quisermos, o que delas fizermos.
Podemos ver com os olhos, com uma lupa, mas também com o coração.
Depois, nem tudo muda e ainda hoje lá está a relíquia que é a mercearia do Arménio, com o mesmo António ao balcão, os mesmos tachos e panelas, fogareiros e penicos, talvez o sabão de amêndoa, aquele cheiro a coisas boas e simples da nossa infância, o aconchego dos sacos de feijão, a tentação de um naco de marmelada e o mesmo azeite espesso que ilumina a eternidade.
O meu longínquo primo Cristiano dizia-me noutro dia que gosta de ir passando pela montra do nosso jornal porque enquanto o fizer é sinal de que não é o retrato dele que lá se encontra debaixo de uma cruz preta. Tanto lhe basta para se sentir bem, chega-lhe estar vivo. É simples como filosofia, mas não deixa de ser lúcida e, porventura, mais profunda do que parece.
E é assim, vamos e vimos, ausentamo-nos e voltamos, as marés sobem e descem, o sol recomeça em cada dia a sua travessia da baía, do Caneiro à doca, o Carlinhos foi a Lisboa e eu dei um salto mais demorado a Paris. Hoje estou de volta, já não vejo Sesimbra de longe, mais ainda imagino. E continuo a reconstruir.
Por enquanto mal tive tempo para pensar e receei não conseguir escrever. Agora estou por dentro e não sei se, para escrever, é melhor ou pior. Só sei que estou de volta, estou de novo em casa. Deixem-me saborear…
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*Publicado em O Sesimbrense de Outubro de 1993.

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