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segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 43


O Central
António Cagica Rapaz

O Central era o café por excelência, conservador, tradicional, sede das forças vivas da terra, da burguesia recatada, o médico, o chefe das Finanças, o doutor da Alfândega...

A sua imagem estava muito ligada à do Grémio, colectividade um tanto aristocrática de que parecia constituir um prolongamento ou um anexo. Durante anos só os grandes patrões da pesca eram sócios do Grémio, não os comuns camaradas. No Central, em contrapartida, muitos clientes eram pescadores, como o Jorge Coxo, o Leste, o Pai de Céu, o Eduardo Submarino ou o Papa-Rebuçados.

O Central era uma segunda casa, com uma grande sala onde cheguei a passar dias inteiros a jogar bilhar, a conversar, a conviver. Era o ponto de reunião de amigos do meu pai, companheiros de paródias da sua juventude, episódios que eu conhecia de cor.

Na confluência de sete ruas, o Central fica junto à mercearia que também pertencia ao senhor Arménio, irmão do tio Chico da Cooperativa, o mundo é pequeno. Ao lado da mercearia, ficava a sede de “O Sesimbrense” e, mais abaixo, a oficina do Brandão onde as marteladas repicavam em sinal de vida e actividade, na quietude da rua Direita. A oficina tinha já um cheirinho a mar, a porto de abrigo, com os pescadores a entrar e a sair, acompanhando o andamento das reparações dos motores. Os mecânicos, de fato-macaco azul manchado de óleo, vinham sentar-se no passeio em frente da mercearia, à rabeça, na hora do almoço. Era a pausa rotineira para tantos homens que tinham o vagar de almoçar em casa, beber um cafezinho e dar dois dedos de conversa, antes de voltarem, tranquilamente, ao trabalho. Homens que não se apercebiam de que o mar, a essa hora, estava menos azul e menos enrugado do que de manhã. Mas que viam o tempo a escoar-se lentamente até ao fim da tarde, quando as barcas voltavam do mar e a lota ganhava animação.

O Central era o senhor Arménio, de mão no colete, chapéu atirado para o alto da cabeça, passo vagaroso e tacada suave em bolas de marfim que guardava em caixa pessoal. Era também a figura bíblica do sô Zé, com o cabelo todo branco, a voz suave, o humor fino, o olhar observador, atrás do balcão.

De Inverno, o Central era a atmosfera acolhedora dos domingos de manhã, o vozeirão do doutor Maurício, o perfume do café, a barbinha feita, um certo ar de festa, a voltinha ao Espadarte, a visita ao mar.

De Verão, era a sombra do Grémio e das árvores, a animação da esplanada, o colorido dos chapéus de sol, o bailado incessante das bandejas com imperiais e bicas, ao despique com o cafézinho do Damião. A esplanada era ainda o tempo adormecido, entre as rendas das senhoras e a conversa arrastada, na amenidade do crepúsculo.

O Central era o coração de Sesimbra, degradou-se com o tempo, perdeu nobreza e dignidade, está cansado, arrasta-se como os últimos passos do sô Zé, carregados de melancolia.

Mas será sempre o Central. E lá ficou um pedaço de mim...

1981

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