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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

CONFRARIA MÍNIMA, 40

as crónicas da Eventos...

O Damião e o Deca*

António Cagica Rapaz

O Grémio começava no Central, era mesmo sua a esplanada que acabou ao serviço do Café. Mas ficou tudo em família, os frequentadores do Central eram, na sua grande maioria, sócios do Grémio e a ambivalência quase roçou a concorrência quando o Damião começou a fazer um delicioso cafezinho, de aroma refinado e sabor requintado…

O meu pai era sócio do Grémio e eu entrei na adolescência saltitando entre o Central, onde aprendi a bem jogar bilhar, e o Grémio, onde o mesmo mestre me iniciou no xadrez. A vista do tabuleiro, a concentração, o ar misterioso e transcendente dos jogadores assustavam-me, não me sentia capaz de tais lances cerebrais. Até que, com a sua infinita paciência, o António Telmo me explicou como empinar os cavalos, fazer deslizar os bispos, avançar os peões, servir-me da rainha e proteger o rei. O resto veio com a imaginação e languidez das intermináveis tardes de Verão, embora o pé me saltasse mais para a praia. O Zé Pedro Rasteiro, pelo contrário, era estudioso, aplicado, tomava notas, levava aquilo muito a sério, punha os cavalos a correr, as torres na retranca e os peões à solta. De cartas nunca gostei (excepto as de escrever) e só lhes prestei alguma atenção quando o Damião me ensinou três ou quatro truques inocentes e rudimentares, os únicos que conheço. O Grémio conservava ainda alguma solenidade, sentia-se o peso de figuras destacadas, homens respeitáveis, havia ordem, certo ritual nas actividades, mesmo no Verão quando as janelas se escancaravam sobre a esplanada onde as belas damas veraneantes faziam renda, exibiam os decotes e o bronzeado. Os homens, sócios, amigos e convidados, desciam para uma imperial do António Luís e voltavam para jogar ou conversar, ler o jornal ou ver televisão.

Nada escapava ao olho de lince, à perspicácia do Damião, o que se passava na sala, o que se pressentia na esplanada, o que ia na rua, na praia, na noite. Gavião implacável, o Damião tinha um sexto sentido, um periscópio invisível, um radar infalível, adivinhava o que as cartas escondiam, descodificava gestos e olhares, era um espírito fino, malicioso, discreto, astuto e arguto…

A cultura teve em Augusto Formiga um dos seus vultos maiores e quase me envergonho de ter provocado o seu afastamento da encenação de que tanto gostava. Era Verão, a televisão uma novidade irresistível e havia que ensaiar uma peça que constituía o ponto alto de uma festa de adeus ao padre João, de abalada para a Ericeira. Ora os meus atrasos acabaram por exasperar mestre Formiga que abandonou o palco da Vila Amália a uma semana do espectáculo, apenas com um único dos três actos sabidos. Ficou o João Salgueiro com as “Mãos Vermelhas” (era o título da peça) para ensaiar e aplaudir o nosso padre João.

Foi uma maldade bem menos intencional do que os pós de espirrar que, certa vez, lancei do alto do tecto, do forro, sobre os jogadores de póquer. As culpas (tal como os pós) caíram sobre os ombros do Alfredo Filipe…

O gosto pela pantomina e a alergia às cartas inspiraram-me uma farsa memorável realizada inopinadamente, certa tarde de modorra, com a cumplicidade do Zé Adelino. Sentámo-nos a uma mesa e começámos a dispor as cartas num misto de paciência, canasta ou algo que o valesse, para mim tudo era chinês. Deixámos correr a fantasia, dando cartas, ordenando cartas, fingindo ganhar e perder, comentando, discutindo hipotéticas irregularidades, numa simulação surrealista e desenfreada, sob o olhar atónito e intrigado de vários associados que tentavam compreender o incompreensível, sem o conseguirem, obviamente, mas sem quererem dar o braço a torcer, nunca admitindo não conhecerem o jogo que nós estaríamos a praticar. Até que um, menos hipócrita, perguntou que raio de jogo era aquele, ao que eu respondi, seca e desprendidamente, tratar-se do Deca. Novo silêncio embaraçado, ninguém ousando reconhecer que desconhecia tal jogo nem perguntando quais eram as regras, apenas seguindo as nossas loucas jogadas. No auge da expectativa, levantámos ferro e saímos porta fora. O Deca nascera e morrera naquela tarde…

Mas o sinal mais visível da presunção vigente era a obrigação grotesca e inflexível do uso de fato e gravata nas noites tórridas de Carnaval. Para fugir a essa ridícula tirania, eu costumava mascarar-me de “Tó Manel”, ou seja, à vontade, manga curta, usando com único e frágil disfarce um mascarim minúsculo que mal cobria o contorno dos olhos. Ora, certa vez, por essas quatro da manhã, e como ter mascarim ou nada era igual, resolvi tirá-lo. Eis senão quando se precipita sobre mim um “ayatollah” da Direcção, guardião do templo da virtude, de galões em riste, lançando-me um ultimato fulminante: ou repunha o mascarim ou ia vestir fato e gravata. Felizmente o ridículo não mata, senão o Grémio seria um vasto cemitério…

Mais grotesco ainda foi terem-me aplicado uma repreensão registada por ter cometido o sacrilégio de ter entrado na sala de boné na cabeça, facto que muito indispôs os prezados consócios que praticavam o salutar desporto do sintético. Como me censuraram o atrevimento e a audácia de forma quase histérica, resolvi ignorar as injunções. E não tirei o boné. Convém referir que nunca, a não ser naquela noite, andei de boné, na minha vida. Comprara-o em Paris e foi uma inocente brincadeira tê-lo posto…

Enfim, malhas que a hipocrisia tece mas que não chegam para destruir no meu espírito a imagem impressiva de belas partidas de xadrez, de conversas de fim de tarde, antes da lota, dos elegantes bailes de Verão, do passadiço até ao Central, do saboroso café do Damião, com um cheirinho a enigmáticas ilusões, um impalpável perfume a escândalo de veraneio, da chegada do Diário Popular com os ecos da última proeza do Agostinho na Volta à França. Foi esse o meu Grémio, com o convívio e a aprendizagem como amigos como o Raul que hoje, milagres dos ciclos da vida, é rapaz da minha idade. É esse o meu Grémio, com os seus excessos, sim, mas sobretudo com o seu inquestionável sortilégio que quero conservar no registo da memória, com prazer e saudade, entre as diagonais dos bispos, uma vitória única, inesquecível, do Fernando Cardoso sobre o Alberto Ló, a sensualidade e os mistérios cultivados pelas máscaras de um Carnaval inconfessável, a par da pantomina impagável do Deca…

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*Publicado no n.º 23 de Sesimbra Eventos, de Fevereiro/Março de 2003.

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