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sexta-feira, 8 de abril de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 4


Académica

António Cagica Rapaz

O sonho doirado de todos os miúdos que estudavam e davam pontapés na bola era, um dia, envergar a camisola da Académica. E, naturalmente, também eu me deixei embriagar pelas melodias da velha cidade, pela melancolia das guitarras, pelo eco dos amores lendários no Choupal, pela sombra das capas e pela sedução do equipamento preto.

A primeira vez que me recordo ter ouvido falar da Académica foi quando o malandro do Capela, o nosso guarda-redes, uma das torres de Belém, resolveu fugir para Coimbra que era a terra prometida para profissionais em litígio com os seus clubes e que corriam a pedir asilo político no Largo da Portagem ou na Praça da República, depois de terem batido à Porta Férrea.

Lá permaneciam um ano e, após esta chantagem escolar, regressavam à base. Mas ele não voltou, apaixonou-se por Coimbra e por lá ficou, Capela que era, encostado à Sé Velha e à Igreja de Santa Cruz, em família. O André fez o mesmo, depois o Jorge Alexandre, muito mais tarde o José Manuel Castro, todos de Belém para Coimbra…

Outro que fugiu para a Académica foi o Faia, do Barreirense, que, com a camisola preta, marcou um célebre golo por entre as pernas do Costa Pereira, proeza que custou um título ao Benfica. Este Faia já era meu conhecido, até lhe pedira um autógrafo, em Sesimbra. Mais tarde viria a jogar contra ele e a tê-lo, episodicamente, como treinador. As voltas que a bola dá…

Também o Péridis e o Rocha andaram em bolandas entre o Sporting e a Académica. Este Rocha, chinês de Macau, mágico da bola, era um dos que constavam da minha magra colecção de Ídolos do Desporto. Nesse tempo, pontificavam na Académica Bentes, Torres, Wilson, Abreu, Malícia, Marta e outros.

Os anos iam passando, eu ia avançando nos estudos e nos pontapés na bola. A meta estava fixada, era completar o 7º ano e, depois, arranjar um empregozinho.  Na minha segunda época de júnior, tive uma tentadora proposta do Sporting que me garantia o pagamento de pensão, estudos, treinos e prémios de jogos. Juca era o treinador e Felisberto Vaz o seccionista. Mas tive receio de ir viver para Lisboa, medo de vir a ser dispensado no final da época, quando passasse a sénior. E acabei por recusar…

Em 1962, realizou-se em Leiria o habitual torneio, entre juniores, com as selecções de Lisboa, Porto, Coimbra e Setúbal, tendo eu tido a honra de ser escolhido para capitão da equipa de Setúbal que venceu (por 5-3) a de Coimbra onde jogavam o guarda-redes Arrobas e o Manuel Duarte que, no ano seguinte, viriam a ser meus colegas na Académica.

Curiosamente, esta circunstância, o jogo entre selecções regionais, não teve influência na minha ida para Coimbra. Na verdade, a Académica mal chegava a ser um sonho, nem me atrevia a pensar nisso. Por tudo, e porque nem sequer tinha dinheiro para ir lá tentar a sorte.

O milagre aconteceu de forma totalmente inesperada e sem que eu tivesse tido a menor intervenção. Foi o acaso de um dos meus professores, no liceu de Setúbal (dr. João Cavalheiro), ser amigo do dr. Hortênsio Pais de Almeida Lopes que era um dos membros da Comissão Administrativa da Académica, na altura.

Para não dar a saber que não tinha dinheiro para a viagem, tive o atrevimento de pedir à Académica que me pagasse o comboio e a pensão. E tive a sorte de não me terem mandado à pesca. Como num sonho, desembarquei em Coimbra, onde nunca tinha estado, para treinar, sob o olhar de Pedroto, ao lado de nomes míticos, os tais ídolos longínquos, quase irreais, como o dr. Torres, o dr. Abreu, o dr. Marta, o Wilson, o Rocha, o Gaio, o Maló, o Curado, o Américo, o Lourenço. Lá estavam outras caras novas, nomes que viriam a ser grandes, na Académica e no futebol português, como o Rui Rodrigues, o Oliveira Duarte, o Gervásio, o Piscas. Mais modestos e tímidos, eu e o Rosales, vindo do Estoril e que haveria de ser meu companheiro de quarto e amigo para a vida.

Entre os titulares nesse Verão 62, contavam-se o França, o José Júlio e o Araújo que aproveitaram a digressão a Moçambique para se juntarem ao Chipenda na luta pela independência da África portuguesa.
Aprovado por Pedroto, realizei o meu sonho de ingressar na Académica e, ao mesmo tempo, entrei na Universidade, coisa que nunca ousara esperar…

Setembro foi o recomeço dos treinos, e a minha primeira época foi de adaptação e aprendizagem, no meio de grandes jogadores e alguns homens notáveis com os quais diferentes tipos de relações se foram desenhando.

Os graves problemas familiares, a falta de dinheiro, a angústia, tudo isso me deixou uma enorme frustração, embora tentasse mostrar cara alegre nas aulas e nos treinos e participar na vida colectiva muito centrada no café Montanha, no largo da Portagem.

Por lá passavam figuras castiças como o gordo Administrador, exótica personagem, velho colonialista de monóculo à Spínola; o Barrinhos, peso pluma que se achava parecido com o Aznavour; o senhor Vaz, da casa das máquinas e dos vapores rutilantes; o gerente Arrobas, mestre de cerimónias num café onde o Humberto servia os clientes e contava que trabalhava por desporto, já que o pai era um rico industrial de cortiça; o Carlos Portugal, exímio basquetebolista, corredor de automóveis e jogador de snooker; o Bigodes da escola agrícola, que metia bolas a atravessar; o Panão, o Manel Cavalo, o Figueiras Antárctida, o Zé Maria das histórias deliciosas, os manos Salvado. O Montanha era o nosso mundo, ali no largo da Portagem onde morava o Mata-Frades e ficava o consultório do dr. Adolfo Rocha, mais conhecido por Miguel Torga.

Na segunda época, Pedroto lançou-me em alguns jogos e havia boas perspectivas de futuro. Porém, há no mundo do futebol práticas a que nem a Académica escapa. Estranhamente, e por razões que nada tiveram a ver com competência, Pedroto acabou por sair. No seu lugar, como era de esperar, ficou o velho capitão…
A terceira temporada foi de total frustração, desencanto a que não posso deixar de associar o nome do senhor Wilson cujo comportamento descrevo com mais pormenor noutra crónica.

Em Maio de 65, o meu pai faleceu e decidi deixar Coimbra, transferindo-me para a CUF. Era uma nova aventura que começava…

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