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quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 44



O Duque*

António Cagica Rapaz

A lota antiga à sombra protectora da Fortaleza, a água transparente da prainha, o calhau da Mijona, a festa do Cabo, a procissão das Chagas, as ruas enfeitadas, o café do Zé Filipe, o Central, a Marisqueira, o Pinto & Pinto são cartazes da nossa terra, imagens tradicionais do universo típico da nossa vila com os seus atractivos naturais, o ardor religioso e a alma boémia.

A nossa terra é tudo isso, as praias, as ruas, os becos e recantos, as tradições, os usos e costumes, as crenças mas, sobretudo, as pessoas. São elas a alma de Sesimbra. A lota, mais do que o peixe estendido, era o diálogo vibrante entre pescadores, vendedores e compradores sob o olhar contemplativo dos curiosos pendurados no muro.

A Marisqueira é o Tony com a dispepsia crónica, as gargalhadas pantagruélicas e as mangas arregaçadas. O Pinto & Pinto é (ou era) o Alfredo, regedor de uma freguesia inesquecível desde o Domingos ao Baeta, do Zé Manel Torres Batista ao Zi, gerações sucessivas de filhos da noite a quem o Deodato matou a fome de aventura e evasão com sandes mistas de amizade e «rusmango».

Sesimbra teve (e conserva algumas) figuras típicas, daquelas que marcam uma época. A minha visão de Sesimbra e dessas personagens foi-me dada por meu pai que povoou as noites da minha infância com narrativas rocambolescas, colorias, saborosas, que iam desde partidas de Carnaval a caldeiradas na Arrábida, de bailes de máscaras a jogos do Pátria, de guerrilhas entre monárquicos e republicanos a sessões de hipnotismo na loja do Câncio. De tudo isso o que mais profundamente ficou gravado no meu espírito foi o sentimento de amizade, de camaradagem. É certo que à volta de uma mesa com caldeirada ou sardinhas assadas e bom vinho, o ambiente tem de ser de festa, a laracha é fácil, a fraternidade espontânea, o juramento fluído.

Porém, dessa superficialidade sem compromissos marcantes algo fica pela vida fora, uma cumplicidade, um espírito salutar, uma lealdade subjacente. As histórias que o Antero do pão contava, com uma graça irresistível, provocavam barrigadas de riso que rebentavam com os cós das calças e faziam sair bocados de «cães-de-monte» pelo nariz.

Era o tempo em que Sesimbra era uma praia de raros banhistas, com o Numância inteiro, carregado de aventura, objecto de curiosidade dos remadores dos charutos do tio Abel. O meu pai tinha um escaler do qual guardei uma fotografia onde se vêem igualmente dois dos seus grandes parceiros de então: o Franco e o Abel Embaixador. A maior parte desses amigos só os conheci de longe, de baixo para cima com os olhos tímidos da minha meninice e sob o efeito da embriaguez das narrativas em que esses homens atingiam a dimensão de personagens míticas.

Mas um conheci eu de facto e por ele sempre tive grande admiração: é o caso do DUQUE. Em Sesimbra, o Duque é uma figura, uma personalidade, uma instituição. Homem de traineiras, do mar, é igualmente uma chama viva de franqueza, generosidade, desassombro, alguma irreverência. E um coração enorme.

Na doca, no Central, no Grémio, na rua Direita, em toda a parte, o Duque é o mesmo, honesto, sorridente, bonacheirão, um grande senhor sem artifícios nem brasões postiços, só com a verticalidade do trabalho e a nobreza do carácter invulgar.

As marés vão e voltam, a Fortaleza permanece altaneira e firme sobre os troncos que a sustentam, o Castelo resiste aos invernos expressivos, mas os homens são frágeis e têm a memória fugidia. Por isso vamos passando ao lado de homens de uma grandeza insuspeita na indiferença da rotina. Cruzamo-nos sem nos olharmos de frente, sem o tempo de um abraço. Quem, como eu, vê Sesimbra através dos filtros do tempo e da distância destaca mais nitidamente os contornos, retoca a imagem das pessoas, avalia a importância das coisas. E da massa sobressaem uns quantos a quem presto a minha modesta homenagem. Não partilhei as caldeiradas na Arrábida mas guardei uma certa ideia da vida e dos homens, formada a partir das evocações do meu pai. E, tal como ele, eu gosto do Duque, da sua simplicidade benigna e autêntica de Homem de alto a baixo.

Contrariando a tirada popular, o azar do meu pai foi que, no jogo da vida, não lhe tivessem saído mais Duques…

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Publicado originalmente em O Sesimbrense de Fevereiro de 1983.

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