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quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 47



Dúvidas*

António Cagica Rapaz

Por vezes, muitas vezes, pergunto a mim mesmo se devo continuar a escrever este tipo de crónicas, não sei se agradam, não tenho a certeza. Não é falsa modéstia, não é apelo disfarçado a felicitações, aplausos, manifestações de simpatia como as que o velho Salazar encomendava. Apenas sucede que muitos indivíduos se mostram carregados de certezas e eu sempre tive muitas dúvidas. Ao longo da minha vida, talvez por ser do signo dos Gémeos, tenho feito equilíbrio, um pé num lado, outro pé algures em mundos diferentes onde por vezes me senti fora de jogo, com ou sem razão. Ainda hoje me sucede, na rua, no metropolitano, olhar à minha volta e perguntar a mim próprio o que faço aqui em Paris, longe de Sesimbra, da pedra alta, do capitão Domingos, do Chico Patrício, da Toca do Ratinho, dos caracóis do Gil, do Carlos Farinha, do mar, sobretudo do mar…

Sempre tive muitas dúvidas e tenho-as neste momento sobre o interesse que possa ter para o leitor este arrazoado sobre as minhas dúvidas. Duvidam?

Não duvidem, é verdade, tenho dúvidas…

Desde que me conheço tive dívidas e tive dúvidas. As dívidas paguei-as, as dúvidas conservei-as porque não há dinheiro que as pague.

Com os anos, fui fazendo certas coisas, seguindo determinados caminhos e fiquei sempre na dúvida se fiz tudo quanto estava ao meu alcance, se fui o mais longe que pude ou se, pelo contrário, podia ter feito melhor. Sempre a dúvida, a alternativa, a hesitação, a duplicidade e no último instante um sinal, uma luz, uma porta, uma flecha a indicar o caminho.

Às vezes rio sozinho vendo à minha volta certas personalidades falando francês, evoluindo num universo normal para eles mas onde eu me sinto, por momentos, como um intruso. É verdade, sinto-me à vontade, exprimindo-me numa língua que não é a minha mas que domino bastante bem.

Porém, a seguir atravessam-me o espírito imagens e figuras de Sesimbra, de outro universo tão diferente que imagino o que seria uma mistura dos dois. E sorrio, discretamente, acho curioso quando vejo o filho da Amália Come-figos a ser recebido, sozinho, em audiência privada pelo Ministro do Interior, Charles Pasqua. Eleito em 16 de Março de 86, fui recebido em 25 de Abril, das primeiras pessoas certamente que o Ministro recebeu. Com esta minha mania de escrever tive uma ideia e escrevi-lhe. Confesso que fiquei surpreendido que me recebesse pessoalmente e tão depressa.

Não lhe perguntei se já comeu carapaus secos ou se já foi ao mar dos Ursos, mas confesso que são coisas que me passam pela cabeça. Ou eu não fosse sobrinho do Justino Come-figos. Devo ter um grãozinho de loucura, mas ainda bem que assim é.

Tudo isto vinha a propósito das dúvidas. Uma das poucas dúvidas que eu não tenho é de que gosto de escrever, isso é certo, gosto de escrever, partindo da convicção (talvez ingénua, crédula e pueril) de que alguém gostará de ler. Por isso escrevo, por essa e por muitas outras razões. A principal é sentir que dou prazer a algumas pessoas ao evocá-las de certa maneira. A razão fundamental que me leva a escrever é, com toda a sinceridade, dar prazer às pessoas que trago a estas colunas e às que lêem. Se lhes dou prazer, também sinto prazer.

Ficamos todos contentes, é uma festa!

É simples, é uma definição banal, natural, sem a menor pretensão intelectual. É um prazer, uma necessidade, manter este contacto com as raízes, com as origens e trazer ao de cima o que me parece e quem me diz alguma coisa de especial. Difícil é arranjar ideias, argumentos, cenários para encaixar as figuras do meu presépio. Se quero evocar o Joaquim Sobral não basta dizer que ele trabalha e mora na Rua Marquês de Pombal por baixo da Carlota parteira. Tenho de construir um enredo, conceber uma história na qual ele terá o seu lugar. Só assim fará sentido e só então o tio Joaquim vestirá o traje que os meus heróis envergam quando os chamo a este palco sem lhes pedir autorização em meia folha de papel selado.

Desta maneira tenho tido um indesmentível prazer ao dar modesto destaque a pessoas de quem gosto e que considero merecerem esta prova de apreço. No fundo, é natural, é o nosso jornal, é a nossa terra, é a nossa gente. Pouco importa se é este e não aquele, amanhã será o outro.
Não sou eu que os valorizo, são eles que merecem e eu apenas sou um instrumento, um manipulador do projector.

O Zeca Simplício era um ás com o microfone, quando apresentava o Amílcar Coelho e os seus sapateados, o Luciano Faria, o António Maquino e o Isac Leão a cantar o «Che la la».
Há tempos, vejam lá vocês, quem havia de dizer, ia eu a caminho do metropolitano, ali ao pé da Rua Auber, ora nem mais, então não querem ver que dou de caras com o Isac que vinha com o filho?

Que na rua Direita, ao entrar no Gás Cidla, eu veja esse homem admirável que é o Duque, nada mais natural. Agora que em Paris, sem mais nem menos, me apareça pela frente o Isac, só visto, contado não é nada.

Eu morra já aqui se é mentira, dê-me já uma coisa, ceguinho seja eu, fique já com a espinhela caída.

É por estas e por outras que surgem crónicas por vezes sentidas e nostálgicas, outras vezes sorridentes, retratos da vida que vivo e recordo, à minha maneira, com o bico da caneta que vou molhando no tinteiro da saudade, chamando aqui como o Zeca chamava ao palco o que de melhor Sesimbra tem, as pessoas de quem gostamos.

Para hoje tinha vagamente pensado contar-vos que sempre fui ver o cantor Serge Reggiani ao famoso Olympia. Quis o acaso que antes do espectáculo, duas horas antes, o encontrasse na rua. Aconteceu. Falámos um bocado e foi para mim um momento de emoção. Serge Reggiani é um grande actor que canta, como só ele pode cantar.

Achei-o muito abatido e tive dúvidas (cá estão elas outra vez) que ele pudesse cantar dali por duas horas, tão débil o senti, um pouco rouco, um tanto gasto pelo tempo, pelo álcool, pela saudade do filho, pela vida.

Mas cantou com a força do desespero, como se fosse a última vez. Foi belo e comovente.
Sofri durante o espectáculo, tive receio de que não aguentasse, estive inquieto e aplaudi cada canção como se fosse um obstáculo que ele conseguisse saltar. Mais um, outro ainda e a sala, de pé, a aplaudir Serge Reggiani com reconhecimento e admiração.

Mas havia no ar um perfume de despedida. Poderá ter sido o adeus, só Deus sabe.

Escrevi-lhe, dias depois, para lhe testemunhar a minha admiração. Não sei se recebeu a minha carta, não sei se algum dia responderá, não tem importância. Importante para mim era escrever, ao grande Serge Reggiani como ao tio Joaquim Sobral. O cantor e o actor só me interessam pelo que, através deles, adivinho ser o homem.

O homem é o nosso denominador comum, é o que conta. O resto é contingência.

Peço-vos desculpa pela extensão de escritos improvisados ao correr da pena que tenho de não saber fazer melhor.
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*Publicado em O Sesimbrense de Maio de 1991.

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