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segunda-feira, 15 de novembro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 32


O tocador

António Cagica Rapaz

Nos anos cinquenta, a povoação das Caixas era uma aglomeração tranquila, escala rotineira da carreira do Covas entre Sesimbra e Alfarim. À beira da estrada, a taberna do Baratinha era o apeadeiro, o ponto de referência, o farol da aldeia. Ao lado, o palheiro do tio Meano, com a roda de carroça encostada.

A estrada poeirenta animava-se duas vezes por dia, na alvura da manhã e na suavidade do entardecer, à passagem da velha Panhard conduzida pelo Pintassilgo. Ao raiar do dia, a camioneta parava em frente da taberna do Baratinha e, por trás dos vidros embaciados, surgia a trémula claridade do candeeiro a petróleo do ti Manel. Era um novo dia que despertava, saudado pelo galo do tio Meano, imperial e tonitruante.

Ao fim da tarde apeavam-se “à do Baratinha” as pessoas que tinham ido à vila, a longínqua Sesimbra, onde havia, segundo constava, uma imensidão de água chamada mar. Dele vinha o peixe que chegava ao campo em caixas manhosas, em equilíbrio periclitante na traseira de bicicleta velha ou motorizada cavernosa. O peixeiro sacava da gaita e tocava a reunir à volta de meia dúzia de cavalas, carapaus moiros, fains e laretas. As mulheres das Caixas iam a Sesimbra vender couves, cenouras, nabos arrancados à terra, de véspera, nas ribeiras húmidas dos Torrões ou da Amieira. Saíam de casa às quatro da manhã, palmilhando atrás do burro, estrada fora, com o tempo que Deus desse. Depois de aturarem, com paciência e resignação, as regateiras das pexitas que tentavam tirar dois tostões num molhinho de grelos ou num raminho de salsa, comiam uma bucha e voltavam a casa, agora montadas nos burricos, Santana acima, Covas da Raposa adiante, Zambujal abaixo, até avistarem o moinho das Caixas de velas dolentes que giravam tranquilamente, ronronando em voz baixa, moendo o trigo, na paz do Senhor...

Ao lado da taberna do Baratinha ficava uma espécie de armazém, de terra batida, com um palanque ao fundo. Era o salão de baile. O Verão era o tempo da debulha, das vindimas e das corridas de bicicleta. O melhor corredor era o Licínio, namorado da Maria Amália, mocetona trigueira de olhos pestanudos, a mais bonita da aldeia e redondezas. O Verão era também a época dos bailes “à do Baratinha”. Os preparativos começavam no sábado. O Manel Pedro andava na armação, mas, em certas ocasiões, exercia a função de barbeiro da aldeia. Instalava-se no salão de baile e toca a rapar nucas e aparar patilhas. Lá fora, as malhas do chinquilho iam caindo com estrondo nos tabuleiros...

No domingo, após o almoço, começavam a aparecer os rapazes, de bicicleta à corredor, risco ao lado, brilhantina, fatinho à papo-seco, calça recolhida por uma mola, de prevenção contra o óleo da corrente. Na recta comprida que se estende até à curva do lagar, é o desfile das bicicletas, pequenas corridas, esticões ao desafio até ao poço da quinta, picardias e larachas, um certo perfume de rivalidade, é dia de festa, há baile nas Caixas.

O salão é salpicado com precaução, para não fazer poeira, e as janelas permanecem fechadas para conservar a frescura. As bicicletas volteiam como abelhas em torno da colmeia. As raparigas, excitadas mas tímidas, correm de casa em casa, compondo um saiote, retocando o penteado, disfarçando o nervosismo. A expectativa cresce, entre o martelar do chinquilho e o carrocel das bicicletas. Os miúdos passam dedos sonhadores pelo guiador, acariciam o selim, correm à estrada e olham com ansiedade a curva do lagar onde esperam ver surgir o mago, o alquimista, o génio capaz de transformar o barracão de terra batida no salão dourado da fantasia de uma juventude modesta. A emoção atinge o seu ponto mais alto quando o João Canito chega, ofegante, a anunciar: - Já lá vem, vem aí o tocador!

O tocador! Na lonjura da estrada, envolto em poeira, dançando, desengonçado, sobre a bicicleta, com o acordeão às costas, ei-lo que chega. Aos poucos, aquela figura de contornos imprecisos, diluída na distância e no ar quente da tarde, vai ganhando consistência. O chinquilho emudece, os rapazes, com as bicicletas pela mão, abrem alas, a miudagem observa, deslumbrada, a aproximação do homem do acordeão que pedala devagar, até cortar a meta da ansiedade.

Os miúdos rodeiam-no, tocam-lhe nos braços, nas mãos mágicas, no acordeão misterioso, com os seus mil botões, o seu fole colorido.

O tocador desapeia-se em silêncio, encosta a bicicleta e coloca o instrumento sobre o palanque, na penumbra do salão de baile. A notícia já correu a aldeia, Deus seja louvado, o tocador chegou. Os primeiros acordes provocam sorrisos de tranquilidade e certa efervescência radiosa. As raparigas começam a chegar, aos grupinhos, vigiadas por mães severas...

Lá no alto, as velas do moinho continuam a girar ao som do acordeão, o chinquilho adormece, as bicicletas repousam, os miúdos espreitam, fascinados, a tarde cai na aldeia, é dia de festa, o tocador é artista, há baile “à do Baratinha”.

Ao cair da noite, cada um regressa a casa para uma ceia animada. Os candeeiros a petróleo apagam-se cedo, o dia foi de excitação, amanhã há que levantar cedo, recomeça a dura labuta. A festa acabou e ninguém se lembra já do tocador que, cansado e solitário, pedala estrada fora no silêncio da noite, com o acordeão mudo a pesar-lhe nas costas e nas pernas. O carro do Pintassilgo só volta quando o galo do tio Meano anunciar a alvorada...

1985

1 comentário:

  1. Admirável crónica de costumes saudáveis...

    Apetece-nos meter marcha atrás no tempo e ensaiar uns passos de dança ao som dum Hohner...
    Não duvido nada que o acordeão do tocador fosse parecido com esse...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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