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segunda-feira, 18 de abril de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 54



Vinte anos

António Cagica Rapaz

- Sabes, Ricardo, eu não gostava que interpretasses mal a minha atitude...

- Claro que não, que ideia tão absurda, não há qualquer mal.

- Não se trata de bem ou de mal, não é uma questão de moral nem de ética, é apenas um princípio de clareza. No fundo, fui eu que resolvi telefonar-te, assim, de repente, depois de quase vinte anos sem nos vermos.

- Não calhou.

- Pois não. E mesmo agora foi realmente o acaso, uma coincidência espantosa.

- De facto, quem havia de dizer!

- Olha, meu querido... não te importas que te trate assim, como dantes, pois não? É uma fórmula, eu sei, perdeu consistência, mas gosto dela, tem a ver connosco. O que eu te queria dizer é que ao longo destes anos todos nunca consegui tirar-te do meu pensamento, continuaste na minha cabeça como um fantasma a sobrevoar o universo em que vivi com o Pedro. Fui-lhe sempre fiel, tivemos uma relação serena, agradável, sem sobressaltos, mas sem chama. Nunca procurei ver-te, apenas fui sabendo alguma coisa de ti através dos jornais e de uma ou outra confidência discreta de amigos íntimos. Até que aconteceu esta coincidência extraordinária de a Isabel ser amiga do João e este ser teu amigo de infância. O mundo é, de facto, pequeno. O resto já sabes, com a cumplicidade do João, fiquei a saber a tua vinda a Lisboa e... pronto, aqui estou.

- Meu amor... permites que, por minha vez, te chame assim? Na verdade, foi uma enorme surpresa ouvir-te ao telefone, ouvir a tua voz, assim, inesperadamente, tantos anos depois. E confesso que foi muito agradável. Na realidade pensava que nunca mais quisesses ver-me nem falar-me, depois de teres decidido romper a nossa relação. Considerei o nosso caso definitivamente encerrado e prossegui a minha vida de aventuras, encontros e desencontros. Até que resolvi assentar arraiais, arrumar as botas, juntar os trapinhos, pôr termo à inconstância. E jurei a mim próprio ser fiel, não me autorizei, nunca, a menor facada.

- E conseguiste?

- Foi uma fidelidade cerebral que funcionou sem a menor falha. Até hoje.

- Olha, a razão fundamental do meu telefonema é a necessidade que eu tenho de te ver, de te falar, de te ouvir, de saber quem és hoje, como evoluíste, como estás, contigo mesmo e com os outros. Para te tirar da minha cabeça, para correr com o teu fantasma, o que foste ou o que eu idealizei, não sei. Mas preciso saber. Até agora não tenho estado disponível porque tu, involuntariamente, não deixavas. Por isso, agora, quero, de alguma forma, exorcizar, encerrar o capítulo, fechar o livro e arrumá-lo na última prateleira do sótão, tirar-te de vez da minha cabeça, libertar-me para poder voltar a viver.

- Está bem, eu compreendo e concordo. Se quiseres, podemos jantar juntos...

- Óptimo. Eu passo aí no hotel daqui a uma hora, pode ser?

- Claro que sim. Espero por ti no hall.

- Achas que me vais reconhecer?

- Diogo, meu adorável palerma...

1998

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