__________________________________________________________________

quarta-feira, 2 de março de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 48




Escuminha*

António Cagica Rapaz

Aqueles dedos calejados pelos longos anos de labuta no mar não são capazes de segurar um copo fino de cerveja. Os seus lábios gretados pelo vento de leste rejeitam o sabor estranho do «whisky». Os seus olhos, à volta dos quais o mar lançou rugas sem conta, olham o mundo à luz de uma candeia serena, ao som de um fado antigo com o gosto de outrora em forma de tinto.

O tio Escuminha não é deste tempo. É o passado que penetra no presente sem pretensões de folclorismo baloufo. O seu boné de pala preta, qual comandante de veleiro de aventura, o seu cachimbo, a peça de fruta, o jarro de vinho, a companhia do tio Guilherme e um sorriso tranquilo que contempla sem criticar quanto de fascinante acontece na Marisqueira.

O tio Escuminha não foi ali colocado pelo Tony a fim de dar um ar castiço. Ele toma o seu lugar porque a ele tem direito e porque, na sua ingénua alegria de viver, o copo de vinho na mesa do canto é um prazer para que o balanço das vagas o atirou e do qual não abdica.

Os dois velhos caturras tomam o seu copo, discutem todo o tempo sob o olhar terno e vigilante do Nelinho que tem um pé no passado heróico e um olho na loira que acaba de entrar…

Quando se apagar o cachimbo do tio Escuminha não haverá cigarro extra-longo que o substitua. O tio Escuminha que conhece as profundezas do mar, que sabe até onde a maré pode subir, abana a cabeça, sorri e pergunta ao tio Guilherme como pode aquele estrangeiro beber tanto «whisky» sem meter a borda debaixo d’água, sem encalhar nos rochedos do sono. O tio Escuminha deita-se cedo porque o sol nasce quando morre a madrugada e o mar chama por ele todas as manhãs…

____________
*Publicado no Jornal de Sesimbra, na rubrica "Quando morre a madrugada - Retrato de uma Certa Sesimbra: Aos filhos da noite". A versão publicada em Noventa e Tal Contos, sob o título “O tio Escuminha”, apresenta alterações e cortes notórios, que, todavia, não alteraram a essência do escrito original.

Sem comentários:

Enviar um comentário