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sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 33

as crónicas da Eventos....




Da eira do Valada ao planalto dos Macondes*

António Cagica Rapaz

O Joaquim Manuel nunca precisou da eira do Valada para ver jogar o Desportivo. Miúdos como éramos, cabíamos por entre as grades da esquelética vedação ou arranjávamos sempre uma alma caridosa que nos acolhia sob a sua protecção. E lá entrávamos para ver de perto os nossos heróis, o Manel Santana, o Isidro, o Zé Broa, o Baeta, o Rogério, e esperar o fim do jogo para saltarmos para o campo, com as redes ainda postas, a cal bem viva e as marcas das traves das botas no pelado áspero. Era a nossa vez, presos à magia do futebol, sonho deslumbrado ao cair da noite…

O Joaquim Manuel não esteve connosco nos dois últimos anos da prodigiosa década de sessenta. Convocaram-no para um jogo cujas regras não lhe explicaram, equiparam-no e mandaram-no para um campo desconhecido para defrontar e eliminar um adversário escondido. Era a guerra colonial, e o local dos encontros era algures em Moçambique, terra do Matateu, ídolo do Belenenses da nossa infância…

Por essa altura, com a camisola da CUF, tive a honra de jogar com o velho Lucas, o nosso Matateu, a quem não me ocorreu perguntar se tinha algum parente para as bandas de Nangololo, algum amigo que pudesse proteger o Joaquim Manuel. Um ano depois dele, em Outubro de 69, entrei eu na tropa, em Mafra, mas não fui ao Ultramar, e nunca hei-de saber avaliar como foi bom ter escapado.

O Joaquim Manuel começou por escrever um diário, talvez para passar o tempo, para registar factos que, paradoxalmente, preferiria nunca ter presenciado. Quem sabe se, ao escrever, não tentava diluir a crueldade daquela guerra, transportando-a para um universo de ficção. Mais tarde, acabou por desenterrar o diário e reviver a guerra, os medos, a angústia, a revolta, a incompreensão, mas também a força da camaradagem, o sabor da vida permanentemente ameaçada, a abençoada excitação provocada pela chegada do correio que lhe levava mensagens de amor, de amizade, de saudade.

“No Planalto dos Macondes” conta a guerra, a vida e a morte, lá longe, para onde foi sem ter pedido, para matar quem nunca vira ou ser morto por quem nunca ouvira falar do tio Amadeu nem sabia que ele era do Belenenses, clube dos manos Vicente e Matateu, moçambicanos como aqueles que se escondiam, preparando mortíferas emboscadas para mutilar ou roubar a vida a jovens condenados a uma luta cega e injusta.

É longe Moçambique, mas diante dos olhos do Joaquim Manuel estava sempre Sesimbra, a família, a namorada, os amigos, a praia, a vida, a verdadeira vida, não a que ele e os camaradas arriscavam ingloriamente em terras que não eram deles. Dele, Joaquim Manuel, era a nossa Sesimbra evocada ao longo das página desta admirável narrativa que deveria ser lida por todos quantos possam estar interessados em saber como se lutou, como se sofreu, como se morreu e como se sobreviveu no horror da guerra, tudo contado com realismo, lucidez e, mesmo, humor. Cada militar tinha a sua aldeia no coração, mas raros são os que falam dos seus sentimentos, menos ainda os que escrevem. Mas o Joaquim Manuel fê-lo e nós ficamos felizes por ele, por ter sobrevivido, por estar entre nós, por ser nosso amigo e por ter sido capaz de nos deixar este valioso testemunho, olhando a guerra à distância, recordando quadros de morte para melhor saborear a vida.

Sabe Deus em que pensará hoje o Joaquim Manuel nas suas caminhadas ao longo da Marginal. Talvez lhe chegue, vindo de longe, o cheiro da mata, o chilrear dos pássaros em cada alvorada, tudo misturado com o perfume suave dos eucaliptos do campo do Desportivo que quase tapavam a vista da eira do Valada…

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* Publicado no n.º 32 de Sesimbra Eventos, de Agosto/Setembro de 2004.

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