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quarta-feira, 30 de março de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 52

um agradecimento especial ao João Aldeia


Central: a meio do sono*
António Cagica Rapaz
O Carlinhos da Rã levantou-se, pegou na garrafa de água e no copo, veio até à nossa mesa, pousou copo e garrafa, sentou-se e, passado um bom bocado, perguntou de forma mais afirmativa que interrogativa se não incomodava…
Foi no Central, num domingo à tarde, a hora morta, quando o Manel Zé conseguiu enfim almoçar. Noutro tempo as mães preocupavam-se com a torreira do sol, recomendavam a sesta à miudagem ou impunham o chapéu de palha, inestético mas útil. O Carlinhos da Rã usava boina, uma boina preta, enorme, enfiada pela cabeça abaixo, quase tão grande como a do outro Carlinhos que morava na calçada. Fiel ao Central há muitos anos, o Carlinhos ancora por ali desde miúdo. Por isso se infiltra com grande destreza por entre as mesas, com o copo e a garrafa na mão, conhece as correntes, escolhe as marés, navega à bolina até chegar de gargalhete à nossa mesa. Só podia ser no Central, só podia ser o Carlinhos da Rã…
Para quem, como eu, tem andado por outros mares, reencontrar o Central é ver a luzinha vermelha do farol em noite de tempestade, alcançar o porto de abrigo em dia de mar feio. Era domingo, a meio da tarde, a meio da vida, a meio da saudade, a meio do sonho que o Central sempre representou a meus olhos. Com o Manel Zé recordámos figuras que passaram pelo Central. Cada um de nós conserva as suas imagens, as suas emoções e o tempo vai retocando, adoçando o contorno.
Fazia falta este Central, com o peso do seu historial, a sua memória colectiva, a sua imponência, o seu simbolismo, marco de uma tradição.
Os tempos são outros, o snooker terá mais procura do que o bilhar e compreende-se a opção. Contudo, bem gostaria de fazer duas bolas a girar como o meu mestre António Vitorino me ensinou.
O bilhar era a disciplina do professor Arménio que, dono da casa, possuía o seu taco, as suas bolas e a autoridade do cientista. As suas lições eram quase tão raras como as exibições do Chico Cagica, todo ele talento, no bilhar e em todos os desportos. Excepcional em tudo.
O bilhar era o «tacho» nas tardes de chuva, com o Orlando dos táxis sempre a chorar, a fazer-se mais azelha do que de facto era e o João Mota, pontapé p’rà frente, a gritar como um trovão. O Leste era um artista, gostava do jogo bonito, com adornos e enfeites, o prazer do floreado, arte pela arte. E depois perdia com o Pai do Céu, de tacada triste, económica, deslavada, sem risco nem fantasia. Espectacular era o dueto Zé Romão-António Casa Pia, com as prelecções do mestre António, os seus passes requebrados, verónicas e manuelinas a acompanhar o movimento caprichoso das bolas…
Era a meio da tarde, a meio da chuva, a meio do Inverno, a meio da melancolia de um tempo que foi. Que foi melhor, pior, não sei. Apenas sei que nos ficou cá dentro, bem fundo, a nostalgia do Central, do sô Zé, do cafezinho, da esquina…
A esquina do Central é um sítio histórico, monumento repertoriado, referência, marco, fronteira, poço de rumores, fonte de intrigas, berço de manigâncias, torre de controlo, ponto de passagem, portagem, malandragem, calhandragem.
O Central ocupou um lugar muito importante na vida de todos nós. E a vida é assim, perdemos o Chagas, voltou o Central…
À noite, na esplanada, houve música, um ar de festa, a ressurreição daquele espaço outrora meio mundano, mas sempre simpático e agradável.
Faltavam os chapéus-do-sol, as janelas do Grémio abertas de par em par, os xailes de renda branca das senhoras bronzeadas. E faltava a silhueta inconfundível da Isabel…
Mas lá estava o Mário Martelo, vértice de um triângulo fascinante constituído pelo seu café, pelo café Filipe e pelo Central. O Mário Martelo é, no meu álbum, o parceiro do Zé Ângelo, uma bigodaça ocasional, irreverente, do tempo em que a lota era uma feira franca e fresca, com o peixe alinhado na areia, com as chatas a carregar das barcas para a praia, com o Pala-Pala num corrupio. O Largo da Marinha era o pátio dos Milagres, homens, burros e camionetas, turistas e curiosos, a tarde a entrar pela noite adentro. O café do Zé Filipe era o verão da lota, o Central era o verão balnear. O Mário Martelo era uma traineira, um café, uma boémia requintada e um belo sorriso que seduziu a Pepita.
Na mesma mesa estava o Luís Preto (também conhecido por Conceição), com uns quilos a mais e a boa disposição de sempre. Poderia ter sido um futebolista de alto nível, se tivesse querido. Outros tempos, menos incentivos que hoje e também uma negligência manifesta, privilégio de talento inato.
O «Ginja» era um miúdo tímido cujo futuro cunhado, o Horta, fazia parte da nossa equipa de juniores, sob o comando do nosso Carlos Marques.
Quando jogávamos fora, lá vinha o menino Eduardo, encostado ao cunhado, para ter lugar na camioneta que nos levava até campos nunca dantes pisados, em regiões inóspitas como o Montijo, o Barreiro ou a Cova da Piedade. Era a idade dos sonhos, para ele e para nós todos que esperávamos, sem grande convicção, um dia ser futebolistas a sério.
O Eduardo cresceu, fez-se um homem e bom jogador. Foi para a CUF, onde eu estava, ao tempo treinada por Costa Pereira, ídolo da nossa meninice.
E assim o Eduardo voltou a percorrer o caminho para o Barreiro, não nas velhas camionetas do Covas, mas no seu pequeno Austin, não para ver os outros, mas para jogar e travar duelos acesos, nos treinos, com o Castro, herói de Sarilhos, gigante à altura de um Fragata com quem se bateu em pelejas de criar bicho.
Os anos passam e certas coisas boas ficam. O Eduardo, hoje homem feito, lá estava também com o Mário e o Luís. Olho-o e continuo a ver um bom companheiro de equipa, sobretudo o miúdo calado, agarrado ao Horta, com olhos de sonho, com olhos de sono, aquele sonho maravilhoso que só a infância nos dá e atrás do qual às vezes corremos a vida inteira…
Foi tudo isto o Central naquele domingo, à tarde com o Carlinhos da Rã, navegador sem complexos, e à noite a poesia de uma esplanada ressuscitada, de um passado ressurgido. Não sei se são melodias de sempre, passadismo a tiracolo, só sei que é bom reencontrar um universo que contou na nossa vida. E estas coisas acontecem a cada passo, a cada esquina. Fiquei com pena de não ter podido falar mais com o Zacarias que me dizia, com um sorriso ternurento «Tenho tanta coisa para te dizer…!».
Também eu, Zacarias, tenho muita coisa para te dizer, recordações que conservam o cheiro a eucalipto do campo do Desportivo, o cheiro a mar que o Rogério (o meu guardião preferido) e o João Caparica traziam ao passar à minha porta, o cheiro ao gelo do Chanoca agarrado ao fato-macaco desse admirável Manuel Santana, o cheiro da oficina do Brandão que não largava o Isidro. Disso e muito mais gostaria de te falar, Zacarias, porque tu foste um menino de ouro naquela equipa de homens rudes, substituíste o grande Jesus, deste de bandeja ao Zé Broa, lançaste o Zé Baptista, tinhas a arte fina dos predestinados. Tudo isto e muito mais te diria, mas não digo para não ficares babado…
E é assim, vê bem, o que faz o Central, para onde me levou o arrais Carlinhos. Menos admirável ficará a minha prima Carolina, mulher do Luís, já habituada às divagações delirantes do pai Justino e à veia poética da nossa tia Lucinda.
Estamos em Agosto, é preciso sonhar porque o tempo é vento e de repente nos apercebemos de que a vida nos fugiu. Os verões são como a vida, passam. E às vezes bruscamente…
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* Publicado em O Sesimbrense de Agosto de 1992.

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