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sexta-feira, 11 de março de 2011

CONFRARIA MÍNIMA, 47

as crónicas da Eventos...



Cá se fazem…*

António Cagica Rapaz

- Vens para baixo? Vamos beber uma imperial?

Foi há pouco tempo, o corpo da nossa amiga acabara de descer à terra. O cemitério começa a esvaziar-se, os grupos vão-se diluindo devagar, lá fora um carro apita, lá em baixo o mar permanece bonito, prateado e indiferente, a vida já retoma os seus direitos…

Não aceitei o convite para a imperial e fiquei a pensar que é sempre assim, em cada funeral. Juntam-se os familiares e amigos, todos contritos, unidos na dor ou, pelo menos, na tristeza, envoltos num manto de solidariedade que as circunstâncias propiciam. Nesses momentos, a estranha magia da morte aproxima as pessoas, devolve-lhes uma espécie de pureza original e uma fraternidade tão sincera como efémera já que só dura a trégua de um funeral.

Terminada a cerimónia fúnebre, a vida continua, mesmo para os familiares mais chegados que vão ter de arranjar forças para prosseguir, para enfrentar o que lhes resta de vida, apesar do sofrimento, do vazio e da ausência. Para trás ficam as palavras de conforto, as fórmulas do costume, os abraços apertados, as palmadas nas costas. Concluindo filosoficamente que é a vida, cada um abandona o cemitério, segue o seu caminho, talvez beba uma imperial…

Seja como for, a verdade é que o choque da morte nos obriga, mesmo que de raspão, a reflectir, nos lembra mais uma vez que somos vulneráveis, simples cadáveres adiados. E desse instante de consciência generalizada da nossa fragilidade e da nossa insignificância nasce a tal solidariedade que nem por ser fugaz deixa de ser real e sentida. De forma mais ou menos difusa, mais cedo ou mais tarde, todos nos interrogamos sobre a morte e, em particular, sobre a eventualidade de uma vida para além dessa inevitável morte.

Numa terra como Sesimbra, com o mar e a morte tão presentes, a existência de Deus é uma certeza tão natural como o regresso do sol em cada manhã. Desde a nossa infância, fomos habituados a viver sob a protecção do Senhor Jesus das Chagas, da Senhora do Cabo, e na companhia dos santos populares, mais próximos, quase fazendo parte da família. De uma maneira geral, os sesimbrenses não se interrogam, não equacionam sequer a problemática da existência de Deus. Por tradição, por necessidade, por conveniência, por atavismo, a existência de Deus não tem sequer discussão. Em verdade, e embora este monstro que é o homem teime em destruir o planeta, basta olhar à nossa volta, contemplar a Natureza, observar o milagre das estações do ano, os ciclos da vida, a harmonia do Universo, para sentirmos que Deus existe.

Para nós, portugueses, o sol nasce, mas não morre, põe-se, eufemismo que encerra algum temor, o mistério da escuridão da noite, de certo modo comparável ao receio da morte, do desconhecido. Os franceses, com toda a tranquilidade, dizem que o sol se levanta e se deita…

Esta convicção simples, porventura pueril, da evidência da existência de Deus não constitui um sinal de intelectualidade aos olhos de agnósticos, ateus, filósofos tenebrosos, mestres iluminados em teologia, especialistas de análises comparativas de religiões, manipuladores de teses, sínteses e antíteses. Pessoalmente, considero que não é possível, a nós, pobres mortais, provar a (in)existência de Deus. Nem tal é desejável porque, a acontecer, acabaria com aquela minúscula partícula de dúvida que têm tanto os que acreditam como os que recusam. Sem essa partícula passaríamos a ter uma certeza que condicionaria perversamente o nosso comportamento. Os que acreditam talvez sejam considerados por alguns como pobres de espírito, é provável. Pôr em causa ou negar a existência de Deus é uma forma de afirmação pessoal, de superioridade em relação à massa ingénua e primária. Porém, bem lá no fundo, talvez haja apenas duas categorias de pessoas, as que acreditam e as que pretendem não acreditar…

Seja como for, o que interessa nesta perspectiva de se acreditar ou não em Deus, de se admitir ou não uma vida para além da morte, é o que fazemos com as nossas convicções, ou seja, que efeitos práticos têm elas no nosso comportamento, no nosso dia a dia, no relacionamento com a vida, com os outros, com a Natureza.

Graças a leituras, conversas, relatos e algumas experiências marcantes, acredito muito firmemente na vida depois da morte, em múltiplas encarnações. Só esta filosofia permite que a vida, tal como a conhecemos, faça sentido. De facto, se pensarmos que nada há antes nem depois da nossa actual encarnação, que tudo se resume a estes insignificantes setenta anos, a vida é um absurdo total, uma monstruosidade, um cenário de injustiças medonhas, de desigualdades intoleráveis. É como se cada um de nós, em vez de 365 dias por ano tivesse um só. Para uns seria de sol, temperatura amena, luar poético, mas para outros haveria chuva, para alguns neve, para uns quantos um furacão, para outros um incêndio, tudo arbitrário, desigual, aleatório, desequilibrado. Não seria justo nem faria qualquer sentido. Ao longo de um ano, nós aceitamos com naturalidade chuva e vento, frio e tempestades porque acreditamos que serão ocorrências passageiras, temos sempre esperança em melhores dias, porque sabemos que eles virão. Se dispuséssemos de um só dia seria dramático e insuportável. Da mesma forma me parece absurda uma vida com período fixo de validade, que determine invariavelmente na cova ou nas cinzas da cremação. É absurdo aceitar como coisa natural um mundo onda há tanta injustiça, tanta desigualdade, onde vivem paredes meias pessoas que sofrem, que morrem de fome, que são exploradas, e criminosos que gozam de saúde, que vivem à larga à custa da desgraça alheia, graças à venda de armas, à droga, à prostituição. Como podemos nós compreender que crianças sofram? Por que motivo morrem uns mais cedo que os outros? Por que razão uns nascem com enfermidades e outros são saudáveis toda a vida? Não pode ser, não faz sentido, tem de haver, para cada um de nós, outro ciclo, para repor a verdade, a justiça, o equilíbrio e a harmonia. Entretanto, o homem é como é, e muitos continuam sem perceber que os verdadeiros valores não são os carros, as casas, os terrenos ou as jóias.

O povo, na sua vasta sabedoria, bem lembra que depois da tempestade vem a bonança. E também diz que cá se fazem e cá se pagam. Esta última máxima tem um significado muito mais profundo do que parece à primeira leitura. De facto, nem sempre e muito raramente, o mal é devidamente castigado. Pelo menos nesta vida, nesta encarnação. Daí que se possa concluir que o povo sabe muito mais do que julga saber…

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* Publicado no n.º 16 de Sesimbra Eventos, de Natal/Ano Novo 2001-2002.

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