__________________________________________________________________

segunda-feira, 7 de março de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 48



O Pirilau

António Cagica Rapaz

Há pessoas assim, desinibidas, e o Zé Manel exibia o seu Pirilau à vista de toda a gente. Fazia mesmo gala na ostentação, na praia do tio Abel, primeiro, e no Espadarte, depois.

Curiosamente, e apesar dos anos que passavam, o Pirilau do Zé Manel continuava do mesmo tamanho, facto que não preocupava amigos nem familiares. As pessoas habituaram-se ao Pirilau do Zé Manel e as meninas de boas famílias não escondiam a cara nem desviavam o olhar. Pelo contrário sentiam certa atracção e devo confessar que eu próprio cheguei a invejar o Pirilau do Zé Manel, apesar de o achar pequeno.

De facto não era grande, mas tinha tudo no sítio, proa, popa, quilha, casco, remos, tudo quanto era necessário a um barquinho de recreio para enfrentar as procelas do triângulo dos Passadiços, contornar os destroços cavernosos do Numância, bolinar à vista da pedra alta e arriscar-se até às paragens inóspitas da Califórnia.

O Zé Manel Torres Batista, o nosso TB, servia-se do Pirilau para passear e, sobretudo, para atrair meninas que não enjoassem, que não tivessem medo dos gargalhetes nem receassem os tentáculos de um polvo amestrado que alugara uma caverna na ala poente do afundado barco espanhol.

O Zé Manel usou e abusou do Pirilau, pescou em mares profundos, versão caseira do capitão Audaz e do seu veleiro Aventura dos inesquecíveis álbuns do Cavaleiro Andante. Lá diz o povo, pela boca morre o peixe e o Zé Manel foi pelo Pirilau. Um belo dia, este flibusteiro do Calhau da Mijona, entregou a espada, arrancou a pala preta, desatarraxou a perna de pau, arreou a vela, baixou pavilhão, arrumou os remos, encalhou na preia mar, conheceu a Quinita...

De Espanha veio o vento e o casamento. Para Espanha zarpou o bom Zé Manel, para desgosto do Deodato que ficou inconsolável e não voltou a fritar lulinhas sem verter uma lágrima salgada. Barcos há muitos, mas Pirilau ninguém tem como ele tinha. O Luís Passos Leite, o Zé Bagaço e o Jorge Aranha andaram a recolher assinaturas que entregaram ao Tony. O Alfredo acendeu velas na Vila Pinto, o Charuto ofereceu, como penhor, o livro de quotas do Desportivo e o nadador-salvador Domingos Nogueira, vulgo capitão Domingos, jurou emendar-se e jamais voltar a aproveitar-se das criadas a quem fingia ensinar a boiar com a mãozinha por baixo e, sobretudo, acabar com as aulas prolongadas de respiração boca a boca...

Nas noites longas e frias de Inverno, pairava no Pinto & Pinto uma nuvem triste e um cheiro longínquo a Gitanes, o lendário tabaco que o Zé Manel introduziu em Sesimbra. Na embalagem azul ainda se vê uma cigana recortada em fundo de fumo. Era já um sinal do destino, sortilégio espanhol, o grito rouco e sofrido do flamenco, a sina do Pirilau.

Dizem as velhas da praia que, em manhãs de nevoeiro, aparece ao pé da Pedra Alta um barquinho a remos, vazio, silencioso e triste, com um maço de Gitanes, vazio, na proa. Ai que saudades, volta Pirilau!

Se o virem, afaguem-lhe a popa, levem-no ao reminho pela borda d’água, devagarinho, com doçura, mas de espia atenta. É um doido este Pirilau, sempre de vela alçada, pronto para novas aventuras, capaz de abalar com qualquer Nau Catrineta. Se o virem, tragam-no de volta, o Domingos agradece, dão-se alvíssaras...

1996

Sem comentários:

Enviar um comentário