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quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 46


Carta ao João Rodrigues*

António Cagica Rapaz

Meu caro João

Não é meu hábito deixar sem resposta uma carta e raramente o faço com atraso. Desta vez, porém, a situação é particular pois estou a escrever-te um bom bocado depois de ter recebido a tua carta. Para ser mais exacto, já lá vão… vinte e um anos. Foi em Outubro de 70, estava eu na tropa, no Porto, no Regimento de Infantaria 6. Ao longo da minha vida escrevi e recebi muitas cartas, mas poucas guardei. A tua conservo-a como um vinho raro que deixamos envelhecer ou um livro precioso que colocamos na biblioteca do salão. É costume dizer-se que toda a carta tem resposta, mas a tua quase não tem, talvez por ser um desabafo, uma confidência, um gesto puro, totalmente desinteressado. E foi uma verdadeira surpresa, primeiro porque não éramos íntimos e, depois, pelas considerações que fazias.

Na gaveta das minhas recordações, o João Rodrigues está na ficha, pertence ao universo Emílio Nero, cujo primeiro expoente era a Mininha, adolescente que eu via passar à minha porta a caminho do colégio do Dr. Costa Marques, com a Maria Emília, a minha prima Lucinda, o Fernando Gaspar e outros. Mais tarde seria uma bela professora primária que os rapazolas porventura terão admirado com o mesmo olhar malicioso do miúdo que eu era nesses tempos de colégio.

Depois, o Emílio Nero evocava no meu espírito o armazém entre os largos do Canino e da Câmara, as ferragens, os materiais de construção, as madeiras, as tintas, o cimento, o Leopoldo de falas suaves e o João Rodrigues de ar grave que não era pessoa que entrasse com frequência na pequena área da minha intimidade. Anos volvidos, abriste a tua loja à esquina da Rua Latino Coelho, a meio caminho entre a «Marisqueira» e o «Pinto e Pinto», ali a dois passos do meu velho amigo Joaquim Sobral. O mestre Joaquim tem a sua ficha, é outra imagem, é a minúscula e acolhedora oficina, os banquinhos de madeira, o cheiro a cabedal, os rouxinóis na gaiola, a frescura da rua lavada com grandes baldes de água à hora a que as mulheres começavam a passar para a praça. É assim que vejo o universo do tio Joaquim Sobral, não me perguntes porquê. É como o Carlos Farinha. Na imagem que dele guardo, é depois do almoço, desce a Rua Cândido dos Reis, junto ao muro da farmácia, de camisola grossa à pescador, a caminho do Central. É assim, são instantâneos que conservei, que queres que te diga?

Na tua loja, eras uma espécie de faroleiro, um olho no café do Alfredo e o outro varrendo de alto a baixo a Rua Marquês de Pombal, caminho que percorri mil vezes menino e Rapaz e, depois, já homem à procura das navalheiras do Deodato e das mil aventuras de verões de fábulas que o Alfredo um dia contará se não lhe der o resmango. Queres outra imagem? Olha, toma lá esta, é o TB, o Torres Batista, que tinha um «pirilau» muito engraçado, barquinho a remos que navegou em águas turvas. Pois o belo Zé Manel, o TB, para mim é o homem dos Gitanes e das lulinhas fritas. O Gitanes é o meu tabaco hoje (um cigarro por dia, sem engolir o fumo) mas foi ele o primeiro que vi com o belo maço da cigana recortada na noite. E foi ele que me levou pela mão a saborear, pela primeira vez, as lulinhas fritas do Deodato, ainda o Alfredo servia no primeiro andar. Foi o meu baptismo na noite do Pinto e Pinto… Gitanes, lulas e Pirilau, aqui tens o TB.

Mas voltando ao nosso namoro, caro João, é verdade que de vez em quando trocámos duas frases, mas os nossos contactos nunca foram assíduos. Por isso me surpreendeu e tanto agradou a carta em que me davas conta da tua satisfação ao leres n’A Bola que me tinha formado em Letras. Dizias-te orgulhoso como Sesimbrense do meu sucesso. Mas bem maior foi o mérito do teu gesto do que o título que consegui.

É muito raro alguém ter a atenção, a gentileza ou certa forma de coragem para fazer um elogio ou felicitar outrem. A crítica destrutiva, a chalaça barata e o gracejo alarve saem com facilidade, são reflexos constantes. Mas uma palavra de apreço custa a dizer, queima os lábios, parece que nos diminuímos ao pronunciá-las. Daí a minha surpresa e sincera admiração pela tua franqueza e pela tua simpatia. No fundo tenho a impressão que, de forma mais ou menos consciente, levamos a vida em competição uns com os outros, desde os bancos da escola. Há uma rivalidade surda e estúpida que nos impede de reconhecer que o Marcos Júlio era um ás na dança, o Alfredo na natação ou o Fragata na bola, sem que as qualidades dos outros nos envergonhem ou diminuam. Este lamentável espírito de concorrência só acaba ou se atenua quando chegamos à velhice, quando varamos a aiola da inveja, quando nada mais temos a provar, quando baixamos os braços, quando nos resignamos, quando depomos as armas e arrancamos as máscaras.

Contrariamente às aparências o Carnaval era tempo de verdades, sem inibições, sem pruridos nem barreiras. Havia muita malandrice, intriga e enredo, mas muita sinceridade também, quando eram murmuradas (como dizia o poeta) «coisas que eu teria pudor de dizer seja a quem for»…

E aqui tens, meu caro João, a expressão da minha admiração um tanto tardia mas que foi tema e pretexto para uma divagação que, espero, não tenha sido enfadonha. Estamos em Outubro, é tempo de Balanças que, segundo os entendidos, se dão bem com os Gémeos como eu. Talvez devesse ter escolhido a carreira de aferidor como o filho do tio Chico Carteiro, aí perto da tua loja. Daqui a vinte e um anos, se vires passar o carteiro, pergunta-lhe se não tem carta p’ra ti, vinda de longe, no envelope da distância e com o selo da amizade…

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* Publicado originalmente em O Sesimbrense de Novembro de 1991.

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