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quarta-feira, 9 de março de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 49


Por trás das máscaras*

António Cagica Rapaz

Há uma dúzia de anos que não me era dado assistir ao Carnaval na nossa terra. Aconteceu este ano por simples coincidência de férias escolares em França com a festa das escolas de Samba, outra escola, outro ritmo, outro recreio.

O Carnaval é como sempre foi, um mundo de contrastes, uma festa imposta pelo calendário que nos leva a rir e folgar do dia tal ao dia tantos, com crise ou sem ela. É o Entrudo, é a tradição, as cinzas do quotidiano vêm depois.

Ora este ano tenho de chegar a uma conclusão e hesito: o Carnaval mudou ou eu, com a idade, não o vejo da mesma maneira. Ou talvez haja uma dose de cada.

Com os meus filhos pela mão, não me preocupei com as máscaras nem com o tumulto dos grupos animados. Olhei à minha volta e, enquanto o Carnaval passava, a vida continuava com o Nuno no hospital recuperando lentamente da operação. Os pais não se meteram em apertos para ver as escolas de samba, antes correram para Setúbal todos os dias, cruzando na estrada molhada os folgazões de circunstância. No café Central lá estava aquele marido angustiado com a mulher internada há um mês sem saber que doença a consome. Não há calendário nem decreto-lei que suprima os dias tristes de melancolia.

Há alguns anos talvez eu não me tivesse apercebido destas situações de pequenos dramas à margem da euforia geral pois no meio da agitação colectiva não há tempo nem espaço para nos determos, consagrando um minuto ao nosso vizinho, ao nosso amigo.

E muitos ao longo do ano vivem assim, sem ligarem, sem se aperceberem do que acontece na vida dos que o rodeiam.

Claro, também vi Carnaval à antiga. Lá estive na padaria do Joaquim do Moinho assistindo à caracterização, à maquilhagem das viúvas laironas de mamas abundantes, falsas e generosas, que eram o Zé Júlio (qual alcunha?), o Jofre, o Zé Duarte, o Arménio, o Mota e o mestre Vítor inspirador do movimento, poeta de veia em riste, navegador de sextante infalível, profeta de uma noite, barítono da maré vazia, irresistível forasteiro. No Toni entraram três loucas (autênticas, à fé de quem sou) que ao verem as viúvas laironas de bigodes farfalhudos, baixaram os braços amaneirados diante de uma concorrência insuperável.

O Vítor (y sus muchachos) é o último moicano, o último exemplar de um Carnaval antigo de improvisação organizada, de génio criador, de espontaneidade, de originalidade, de erupção prazenteira. O Carnaval de Sesimbra está a entrar na era industrial com a quantidade a ocupar o lugar da qualidade, com as massas a empurrarem pela borda fora o folião individual, o arauto da paródia, o menestral da risota.

Ao acaso de uma visita à antiga oficina dos Brandões (daqui saúdo o mestre Zé, uma saudade sorridente) e deparei com o Ernesto (mas qual alcunha?) que me confessou ter havido choros com a cassete que eu fiz com as histórias dos filhos da noite. Da mesma cassete me falou o Alfredo na noite dos pares de cornos, enormes e alambazados, que o Urbino e o seu comparsa nos puseram (ao Alfredo e a mim) para uma fotografia carregada de lenha e de malandrice.
A história desta cassete dará para outra crónica onde se falará do Alfredo, do Toni, do Ernesto, do Charuto e do Júlio Silva, o meu rico Júlio, o John português que matava o cavalo na feira da Agualva.

Pois o meu rico Júlio ficou com a cassete que eu fizera para o Alfredo, a tal cassete que (segundo as línguas indiscretas dos filhos da noite) arrancou uma lágrima rebelde a muitos dos malandros que julgavam que os homens não choram.

O Alfredo, com o coração grande como a serra da Arrábida, contou à minha mulher a partida do dominó sem pedras e os anzóis empatados sem fita nem anzóis, enquanto o Charuto transformava a realidade criando um clima mágico entre duas vagas cavernosas, com a chuva a fustigar a vidraça, na hora sombria em que o dia ameaça e se fina a madrugada.

O Toni amadurece com a sua bigodaça monumental e uma serenidade surpreendente.

Há trinta anos no Clube Naval o miúdo que eu era, do alto dos seus dez anos, almoçava com um amigo mais velho e era servido por um empregado atlético a quem o meu amigo chamava Tarzan. Era o Toni o Tarzan com o seu cabedal a aparecer por baixo do casaco branco e a sua vaga semelhança com o actor francês Jean Marais. Só que o Jean Marais não é cá dos nossos e o Toni bem pelo contrário.

Foi um longo caminho para o Toni, anos e anos atrás do balcão da Marisqueira, noitadas de trabalho e de malandrice, de dispepsia e parafusos mas sempre ao leme da barca, sempre a iscar a caçada, sempre a comandar as operações.

E aí temos o Toni bem na vida graças ao seu esforço e ao sorriso permanente, à bonomia, à simpatia bonacheirona, tudo com um olho vigilante e uma presença constante.

O Toni é um cartaz de Sesimbra e uma figura notável.

Os tambores calaram-se, os trajes dormem em caixas de papelão, as luzes apagaram-se. A vida continua…

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* Publicado originalmente no Jornal de Sesimbra.

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