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sexta-feira, 15 de abril de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 5



CUF

António Cagica Rapaz

O Barreiro evocava, no meu espírito, o fumo das fábricas, o lodo da maré vazia, terra de gente sombria, contracapa descolorida de Lisboa.
Estávamos em 65, era o adeus ao irrespirável campo de Santa Bárbara onde jogara várias vezes e onde vira, em miúdo, muitos jogos do Belenenses. Recordo a desagradável impressão da Guarda Republicana, de costas para o campo e olhos fixos nos espectadores, um pavor ridículo.
Conservava dos jogadores da CUF uma imagem de homens-máquina que deitavam fumo pelos olhos, enchiam o peito de azoto e arrotavam gás carbónico, e a ideia de trocar o Mondego pelo Tejo e o choupal pelas fábricas, não me entusiasmava. Porém, a CUF oferecia-me melhores condições monetárias e a possibilidade de continuar a estudar.
A CUF era uma colectividade de características muito especiais que aliciava os jogadores com a promessa do futuro garantido, com um emprego nos escritórios, argumento que lhe permitia pagar fracas luvas. Futebolistas em fim de carreira aproveitavam a oportunidade, casos de Arsénio, Faia, Mário João, Salvador e outros. Mas para os mais novos era uma ilusão, o ordenado no escritório era fraco, porque as habilitações eram modestas e porque não eram assíduos ao trabalho. Só raros como o Zé Maria e o Abalroado, iam com alguma regularidade ao serviço. Com ausências sistemáticas (cobertas pelos avisos do Gregório Palma), não justificavam aumentos que teriam escandalizado os colegas que não faltavam. E no fim da carreira de futebolistas estavam com o mesmo ordenado com que tinham entrado, mas habituados aos extra dos prémios de jogo. Por isso, de certa forma, a CUF era uma miragem, porque nunca foi frontalmente assumida a situação de excepção que os jogadores deveriam ter. E futebolistas extraordinários, como o Medeiros, podiam ter feito grandes carreiras noutros clubes, em vez de ficarem presos à ilusão de um emprego…
Para mim foi o ideal, porque me permitiu continuar a estudar. De manhã ia à Faculdade de Letras. Depois, almoçava a correr, apanhava o barco para o Barreiro, e só voltava a Lisboa à boca da noite, para descansar, estudar e alguma diversão. Apesar deste ritmo e dos estágios, consegui um aproveitamento total, tendo concluído o curso sem grande dificuldade. Porque tinham desaparecido os motivos de angústia que me haviam atormentado em Coimbra…
O clima na CUF era muito especial, havia uma casta superior constituída pelos senhores engenheiros que dirigiam o clube e que tinham com os jogadores uma relação algo ambígua. Gostavam de futebol e tinha uma evidente admiração pelos futebolistas, honravam-se mesmo de certa forma de aparente familiaridade. Contudo (e é a outra face da moeda) cultivavam a superioridade, usavam o tratamento por tu num tom condescendente e senhorial. De um lado, o jogador da bola, do outro lado o senhor engenheiro. Apreciavam o servilismo, a lisonja, a reverência, e gostavam de ver os jogadores lutar em campo como os tribunos romanos gozavam o espectáculo dos gladiadores no circo. Há aqui algum exagero, mas não muito. A verdade é que esse tipo de subserviência nunca foi a minha especialidade. Tal como nunca senti vocação de gladiador. Certa vez, num jogo amigável, fui excluído ao intervalo porque “não dava porrada”. Expus os meus argumentos e acabei por voltar ao jogo…
O meu primeiro treinador foi Manuel de Oliveira, sagaz, competente, trabalhador. Saiu a meio da época, tendo sido substituído por João Mário e, depois, pelo arquitecto Anselmo Fernandez. A seguir, veio Meirim e, mais tarde, Costa Pereira.
A CUF podia ter sido a primeira equipa-empresa do futebol português. Bastaria que a família Mello tivesse querido usar o Grupo Desportivo como o seu principal cartaz publicitário. Mesmo assim, marcou regularmente posições de relevo, tendo chegado a defrontar o Milão na Taça das Cidades com Feira. O deslumbramento dos directores foi tão grande que só quando a equipa estava equipada no balneário de São Ciro se aperceberam de que os cartões dos jogadores tinham ficado no Barreiro.
Lá fui parlamentar com o árbitro alemão que fez o que hoje seria impensável, fechou os olhos, aceitou como prova de identificação a assinatura dos jogadores. Era outro tempo, outra inocência…
Esta equipa da CUF tinha, naquela altura, grandes jogadores e homens de forte carácter. O guarda-redes era o José Maria, comprido e experiente, figura lendária do clube que acabou por dar lugar ao Vítor Manuel, um fabuloso e jovem guardião vindo de Alhos Vedros. Quando, vítima de lesão gravíssima, teve de abandonar o futebol, foi substituído por outro Vítor, o Cabral, notável, seguro, forte personalidade, inteligente e um grande companheiro. Na defesa, o Bambo e o Abalroado eram valores de créditos firmados. Sem serem estrelas fulgurantes, eram certinhos, eficazes, de rendimento garantido. Mais tarde, chegou o Castro, um defesa excepcional. Outro Vítor (Marques) veio de Sintra, para reforçar a defesa. Estrela grande era o Medeiros, avançado adaptado a quarto-defesa que foi o pilar da equipa durante muitos anos. Podia ter sido ainda maior, mas a CUF prendeu-o sempre. No meio campo, tivemos belos talentos como o elegante Alfredo Espírito Santo, o hábil Vieira Dias, o talentoso Pedro, o colossal Arnaldo, o experiente Mário João, o polivalente Sério. Mais tarde, viria o Rogério, do Varzim, excelente jogador. Na frente, a dupla formada por Fernando e Capitão-Mór fez muitos estragos, era possante e eficaz, rendeu muitos golos. O Monteiro era uma enguia, com os seus dribles em zig-zag. Ainda me foi dado apreciar a invulgar arte do Úria, um minúsculo jogador com um pé esquerdo prodigioso e um diabólico poder de finta.
Tive o melhor período no tempo de Meirim e, mais tarde, em 1969, Costa Pereira nomeou-me capitão da equipa. Seguiu-se uma fase de mal-entendidos, felizmente ultrapassados, e sucederam-se episódios determinantes. Em fins de Março, vésperas de um jogo contra o Benfica, recebi um convite formal da parte de Pinto de Magalhães para apresentar condições para ingressar no Porto. Fiquei admirado e honrado, mas não respondi. Ou melhor, esclareci que, em Outubro, iria para a tropa para o Curso de Oficiais Milicianos, em Mafra, inapelavelmente. Achei que seria desonesto fingir que não sabia, e recusei. A tropa foi a razão maior, é indiscutível. Por outro lado, por razões familiares, não queria estar longe de Sesimbra. Mas, lá muito no fundo, talvez se mantivesse a mesma insegurança que me fizera recusar a proposta do Sporting, quando júnior…
Curiosamente, um ano depois, estava colocado no RI 6, no Porto. Pelo meio, tinha estado um ano sem jogar, por lesão, primeiro, e por causa da tropa, depois. O Porto, entretanto tinha contratado o Armando Manhiça, e eu tentava vir para perto de Lisboa. Meirim queria-me no Belenenses e acreditava que as altas figuras do clube conseguiriam a minha transferência militar, o que não sucedeu.
Ficou-me ainda outra consolação, o apreço que Otto Glória manifestou por mim. Sei que chegou a falar ao Costa Pereira, mas este nada me disse, pois na altura andávamos em marés divergentes.
Ficaram-me estes pequenos e vagos motivos de remoto orgulho…
No fundo, conservo muito boas recordações dos anos passados na CUF e não esqueço que foi a solução para os graves problemas que tive.
Noutro clube, dificilmente teria conseguido concluir a licenciatura, mas não há favores em futebol. Tudo teria sido diferente, não fora a tropa, mas os tempos eram de guerra. Convocaram-me para Mafra e não voltei ao Barreiro…

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