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segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 37


Os Zambras

António Cagica Rapaz

Eram quatro como as estações do ano, como os pontos cardeais, como os naipes das cartas, como os Beatles e como os três mosqueteiros. Quatro eram os Zambras que, na década de 60, constituíram um conjunto de apreciável valia, aposta ousada, inspirados na melodia xaroposa dos Bee Gees.

A esplanada da Marisqueira era tímida, meia dúzia de mesas e cadeiras diante da porta, mais estalagem de corsários de má morte do que bar selecto ou restaurante requintado. A dois passos ficava o café do Joaquim Pólvora, antigo extremo-esquerdo do Desportivo que foi rendido pelo Hermínio Pinhal, também ele à frente de um café, o Martelo, berço dos Galés. Ao lado do Pólvora, pai do Eliseu, a minha tia-avó Francisca ia ficando cada vez mais mirrada naquela cova funda onde está hoje o restaurante Pedra Alta. Mas nunca perdeu o olhar vivo, de brilho intenso, malicioso e lúcido. Era irmã da minha avó Sabina que também passou anos atrás de um balcão, na rua dos Pescadores.

Sesimbra vivia uma época de fulgor e euforia, com a epopeia do Desportivo, o esplendor da lota, a animação da esplanada do Central, o cartaz folclórico do Chagas, a roda viva de barcas e traineiras em bailado garrido em frente da fortaleza, o rodopio das gaivotas, a festa saudável do Verão que os Galés cantavam pela noite fora, enquanto durava o fôlego do António do Porto, o homem da gaita. O Hotel do Mar era a excelência, templo inacessível, mistério e fascínio, com as suas paredes de inspiração monacal, o requinte despojado, o santuário de uma boîte de configuração insólita, com várias pistas de dança, caverna das mil e uma noites de sedução e fantasia.

Os Zambras tinham o mesmo espírito folgazão dos Galés, mas tocavam uma oitava acima, não vestiam camisola aos quadrados, empunhavam guitarra eléctrica e exibiam-se no universo sofisticado do Hotel do Mar, consagração para os nossos artistas que lá iam safando Massachussets e dizendo Words à média luz, em murmúrio suave.

Mal acabava a função, era vê-los com o António do Porto, na rua de Alfenim, de roda da fogueira, com o Helder, de guitarra cúmplice, em enlevada serenata a uma menina da Calçada.

Mal ele sonhava que, um dia, viria a ter o Pedra Alta ali mesmo ao lado do café do pai do Eliseu. Nem o Valdemar imaginava vir a suceder ao Cabecinha. O quarto elemento, o Zé Costa, deu os primeiros passos na boémia saindo, em bicos de pés, da mercearia do tio Arlindo para levantar, hesitante, a cortina do Espadarte Clube onde o Zé Manel e o Júlio Silva se enfrentavam, noite após noite, em despiques fadistas animados e vibrantes. Os Zambras ficaram na nossa memória como o eco distante de um tempo feliz, verões coloridos, festa na rua, Sesimbra sentada à porta até a noite se extinguir nos últimos acordes da gaita de beiços do António do Porto...

1998

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