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segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 41




Os Maurícios

António Cagica Rapaz

Quando os Maurícios chegaram a Sesimbra um vento novo soprou no Colégio do Costa Marques. A nossa terra não estava habituada a ver desembarcar assim, de forma definitiva, tão grande família. No Verão, sim, era a costumada invasão dos alentejanos, com uma carrada de filhos, a pele tisnada e o sotaque vagaroso.

Os Maurícios eram uma catrefa, um regimento de saltimbancos coloridos, ruidosos e simpáticos. Fiquei deslumbrado com a camarata em que foi transformado o quarto, camas sobrepostas, um certo ar de caserna numa casa que marchava à voz de comando do patriarca Maurício, com o seu nariz arrebitado, a boquilha de quilómetro e o Peugeot 203 que ancorava à porta do Central às onze e meia da manhã, já almoçado. Comia-se cedo em casa dos Maurícios, e o Central aquecia com a chegada do comprido Doutor cujo vozeirão enchia de pavor o suave sô Zé da fala mansa.

O Afonso seria o mais doente e entusiasta, mas todos eles eram da Académica e traziam consigo um perfume nostálgico de Coimbra, cheiravam a capas e batinas lendárias, a choupal outonal. O Henrique ofereceu-me um minúsculo emblema da Briosa e talvez tenha nascido assim o meu sonho de Coimbra. No fundo, todos quantos estudávamos e jogávamos à bola sonhávamos com a Académica, mas vestir um dia a camisola preta era tão irreal, estava tão longe dos nossos horizontes como as aventuras do Luís Euripo, do João Tempestade, do Bronco Bustin, do Rúben Quirino, do Jerry Spring, do Cisco Kid, heróis do Condor Popular de que cheguei a ter uma razoável colecção ofertada pelo Manel Elisbão.

Menos o Luís, que era meu parceiro de turma, mais o Henrique e, sobretudo, o inefável Afonso foram despertando em mim aquele desejo secreto. Juntamente com os exemplares do “Condor Popular”, recordo-me de ter tido um ou outro número da colecção “Ídolos do Desporto”, entre os quais o de um jovem macaense chamado Augusto Rocha, um jogador genial que era o menino bonito de Coimbra, cidade maravilhosa, universo mítico de greves estudantis de 61, com o sortilégio das capas negras e o romantismo das serenatas. A Académica era a irreverência, a transcendência de um futebol diletante, claques apaixonadas, a mística e o sonho. Com o Afonso a descrever e a retocar aquele mundo admirável, o sonho foi crescendo.

Quiseram o acaso e o destino que acabasse por ir para Coimbra e para a Académica onde viria a encontrar-me com o Afonso que me levou a casa dos tios em cuja família entrei e de que continuo a fazer parte, pela grande amizade que nos liga.

O Luís e a Luísa já nos deixaram, o doutor Maurício teria hoje muita dificuldade em estacionar o Peugeot 203 em frente do seu café, o nosso Central, o Henrique raramente vem a Sesimbra, o João e o Jorge tornaram-se verdadeiros pexitos enquanto o Afonso se esconde no campo, poucas vezes nos dando a alegria da sua presença e da sua imaginação exuberante.

Era uma grande família, foi-se fragmentando com o tempo, ficam-nos as recordações aqui e ali reavivadas, como sucedeu em Oliveira do Conde, com o admirável Jorge, cenoura simpático, senhor de fino humor, um grãozinho de fantasia, a encantar o tio António e a enternecer-me quando evocou a figura do pai Maurício. Vieram, ficaram, são dos nossos, os Maurícios...

1992

1 comentário:

  1. Como é reconfortante, mesmo sem os haver conhecido, perceber pela simples leitura deste magistral texto, o quão importante se tornaram os Maurícios na vida do nosso mestre!

    Todos passamos, ao longo da nossa existência física, por situações idênticas, de pessoas que nos marcam e que, por este ou aquele motivo, nem se apercebem que tal sucede. Daí a importância destas linhas, na homenagem sincera a quem nos toca e, como muito bem é referido, entra no grupo dos nossos!

    Como sucedeu com o Cagica, que será sempre dos nossos!!!

    Boa noite, ó Mestre!

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