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segunda-feira, 21 de março de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 50


Obrigado, João

António Cagica Rapaz

- Monstro, coração de tigre! – era o grito de ódio do jovem Polónio, patrício romano, no palco da Vila Amália, tendo por alvo o imperador interpretado por João Salgueiro.

Era nos finais dos anos cinquenta, na noite de despedida do padre João, de malas já feitas, com a Ericeira por destino. Na primeira fila, estava sentado mestre Augusto Formiga que, uma semana antes, abandonara a encenação da peça, tendo ficado a tremenda responsabilidade sobre os ombros do João Salgueiro. Tratava-se de um drama em três actos intitulado “Mãos Vermelhas”, designação tão desprovida de insinuação política como a actividade da Mocidade Portuguesa cujo centro funcionava por baixo do salão da Vila Amália, ao lado da escola dos órfãos que tremiam com o vozeirão da Cecília Cruz...

A Mocidade era a nossa outra casa, com o jornal de parede, o ping-pong, o bilhar, as damas, os acampamentos, o voleibol, o atletismo, a natação, o teatro, a televisão e, sobretudo, a convivência saudável, cantando e rindo, é mesmo verdade, graças à boa vontade, à disponibilidade e ao entusiasmo do João Salgueiro.

Na Mocidade cresceram e fizeram-se homenzinhos muitos dos que, anos depois, haveriam de marcar posição numa sociedade pluralista e democratizada cujos valores não constituem novidade para quem frequentou aquela casa.

Durante muitos anos, em Sesimbra, o teatro despertou paixão, teve público interessado e intérpretes de valor. Um deles foi o João Salgueiro com quem tive a oportunidade de contracenar e de admirar em desempenhos notáveis como na peça “Fátima, Terra de Fé”.
Ao longo da sua vida, João Salgueiro dedicou muito de si, do seu tempo, da sua energia e da sua paixão, a actividades de natureza social e cultural, na igreja, em colectividades de recreio, em jornais, sempre com seriedade e competência.

Nunca nos perdemos de vista, ligados por certas afinidades, as práticas saudáveis e o espírito da nossa Mocidade, o gosto pelo teatro, a recordação do padre João. Partilhámos afectos e valores, causas e brios, certa forma de cumplicidade, alguma nostalgia das manhãs frias de cada 1º de Dezembro, com missa e cornetim no momento do ofertório. E, sobretudo, das tardes inesquecíveis, na Vila Amália.

Continuamos a cruzar-nos, antes do almoço, em cada domingo, junto do palco gigantesco que é o largo da Marinha. Por trás de nós, o cenário constituído pelo casario, personagens que se movimentam ao fundo. O muro da lota fica à boca de cena e o mar é a plateia infinita. Trocamos réplicas, como nas “Mãos Vermelhas”, e depois cada um vai à sua vida, saindo pela esquerda baixa, até para a semana.

Já não há teatro em Sesimbra, mas, graças a Deus, não esquecemos os nossos papéis e a chama da nossa Mocidade não se apagou.

Obrigado, João!

2000

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