__________________________________________________________________

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 34


A Natureza faz bem as coisas

António Cagica Rapaz

Há no nosso quotidiano pequenas coisas, gestos que repetimos e a que não atribuimos valor especial. Porém, alguns deles vão ganhando, lenta e subtilmente, no nosso espírito, contornos e significados que, um dia, sem sabermos como, se tornam claros e impressivos. Abrir e fechar uma janela é gesto que podemos realizar mil vezes, uma vida inteira, sem lhes juntarmos a menor partícula de emoção. Mas pode muito bem suceder que, de repente, tomemos consciência de que uma janela que se abre é muito mais do que um fecho que puxamos e duas portadas que afastamos. Aos poucos, foi surgindo em nós um sentimento insinuante associado àquele gesto que adquiriu, sem nos darmos conta, um simbolismo inesperado e maravilhoso. E então apercebemo-nos de que abrir uma janela pode ser como abrir o nosso coração para uma paisagem, para um cantinho do nosso mundo, para a vida, para o amor. Abrir uma janela é como um pai que abre os braços para aconchegar no peito o filho que corre para ele. Como abraçarmos a mulher que amamos ou o amigo leal. Abrir uma janela pode ser fechar os olhos por um instante, deixar entrar o perfume do campo ou a brisa do mar. E voltar a abri-los para contemplarmos, longa e silenciosamente, o ondular do trigo, o oceano a perder de vista, o céu infinito, rodeando pela cintura alguém que partilha connosco esse momento abençoado. Uma andorinha que passa, em voo rasante, interrompe a contemplação e, com febrilidade, vamos abrindo, uma a uma, todas as janelas, com a excitação de crianças às voltas com os brinquedos em manhã de Natal. Fechar uma janela é estar de partida, a penumbra que já invade a casa e a nossa casa. Foi ao fechar uma janela que vi a Cidália...

Acenei-lhe e trocámos duas frases de saudação. Por aí teríamos ficado se ela não tivesse acrescentado, com voz inquieta:

- O homem está no hospital.

O homem podia ser o marido, mas é o pai, o patriarca, o carvalho austero que a Soraia transforma em frágil vime com um olhar meigo ou beicinho sentido. A sua voz sonora faz coro com a natureza, ouvi-lo à distância tranquiliza, estamos com a nossa gente, está tudo no seu lugar. Não preciso de o ver para saber que está, ainda agora o ouvi chamar pelo Rodrigo. O Fernando foi buscar lenha à Raposa, o Inverno não tarda, os sobreiros protegem do vento oeste, os cães já se enroscaram, o pão está cozido, o dia vai chegando ao fim. E o homem está lá...

A Soraia não percebe, revolta-se contra os médicos que não deixam o avô sair do hospital. É a primeira vez que sente receio, finge não compreender, para afastar aquele sentimento estranho, aquela forma de medo vago, impalpável, muito diferente do que sente quando matam o porco.

A Natureza não se engana, nós estamos habituados a uma certa ordem e aquele quadro só faz sentido com o patriarca a comandar as operações do labor quotidiano ou arrimado à casa, contemplando o pôr do sol.

Agora, a Soraia vai brincando aos comerinhos, às casinhas, forma que tem de afugentar angústias. O Rodrigo senta-se horas esquecidas no tractor, imitando o pai. O quadro não é o mesmo, falta a figura maior do presépio. Mas tudo vai voltar ao seu lugar, o homem vai regressar não tarda, a Natureza faz bem as coisas...

1998

Sem comentários:

Enviar um comentário