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quarta-feira, 20 de abril de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 55



Mestre José Brandão*

António Cagica Rapaz

Para quem vive longe, o jornal é como uma carta de um amigo que nos relata o que vai acontecendo na nossa terra, no largo do Canino ou na rua Direita. Mas um amigo, quando tem alguma má notícia a transmitir, prepara o terreno, progride com precaução, previne, avisa, suaviza. O jornal não pode entrar nessas águas da afectividade e informa com alguma secura o que de bom e menos bom ocorre na nossa vila.
Assim, fiquei a saber que o vendaval voltou a rugir, medonho e lúgubre, metendo as garras horrendas e mortíferas por entre os grãos de areia da nossa praia, deixando-a em rocha viva. Esta notícia transportou-me para outros tempos, outros vendavais em invernos longínquos, com as vagas fustigando a Fortaleza e a pedra alta, o vento a ameaçar as folhas de zinco da «Sopa» e as estrelas de papel reforçado, presas por um cordel, a subirem oscilando no céu escuro e as nuvens que fugiam vertiginosas a caminho do Castelo, isolado e fúnebre, onde o Rafael punha a tranca na porta e os torreões tremiam de frio. E o mar levou um jovem pescador, drama que merece respeito e digno silêncio. 
Outra morte que me deixou perplexo e desamparado: perdemos o Zé Brandão. O jornal mostrava-o na fotografia tradicional acompanhada pelo testemunho de gratidão habitual e lembrava-nos que ele se chamava José António Preto Júnior. Mas para nós era o Zé Brandão, o nosso velho mestre de armas, o coronel das Índias que conduzia as tropas no combate da noite e da brincadeira. Um companheiro sempre bem disposto, modelo de correcção, cordialidade e elegância. Os preconceitos postiços de muita gente devem ter provocado certas críticas, decretando que um homem daquela idade devia ter juízo e não andar naquela vida. Bem ele fez em ter aproveitado os últimos anos para respirar a plenos pulmões a alegria bonacheirona da boémia singela e beatífica da companha que embarcava na traineira da Marisqueira que lançava as redes no Chagas ou no Espadarte Clube, guiado pelo timoneiro António do Porto de reco-reco à laia de leme, para ouvir os tremidinhos do Zé Manel e assistir à agonia do cavalo que o Júlio matava noite sim noite não na feira da Agualva. Muitos dos que criticavam passavam as noites no convés do fumo, batendo as cartas em sintéticos de má sorte.
O Zé Brandão era o chefe de fila de uma velha guarda bem humorada e sem outra pretensão que não fosse rir e dar ao pé, sem convicções ilusórias de conquistadores de fotonovela barata.
Fica para a história local a epopeia da peixaria do Ernesto e da oficina do Zé Brandão. E fica na memória de todos nós o sorriso permanente e a figura simpática do velho mestre. A nossa terra é sobretudo a nossa gente. E o Zé Brandão era (e continua a ser) dos nossos. Boa noite, ó mestre!
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* Publicado em O Sesimbrense de 21 de Fevereiro de 1982.

1 comentário:

  1. é verdade, os jornais regionais são a aproximação às nossa terras e às suas gentes, nas boas e más novas...

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