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quarta-feira, 13 de abril de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 54



E o mar…*

António Cagica Rapaz

O mar é azul, forte, carregado de ameaça que o céu não nega, escuro também, cúmplice, no limite impreciso de um horizonte sombrio.
Mas não é um mar de angústia aquele quadro de Alice Jorge que vi noutro dia em Lisboa numa sala acolhedora como um porto de abrigo. Da janela vê-se o Castelo de S. Jorge e um palmo do Tejo. Na parede é o mar, um mar fascinante, à primeira vista assustador, tenebroso, em véspera de vendaval precoce de Setembro. É um mar parado, pesado, enlutado, plúmbeo, mas que estranhamente nos comunica paz, quietude, tranquilidade, suavidade, eternidade. E essa sensação surpreendente virá porventura da presença de umas aiolas pequeninas, imóveis, silenciosas, impassíveis, tranquilas, no meio de um mar de cólera dominada, mar morto…
 A impressão de infinita serenidade talvez resulte do contraste entre a fragilidade, a inocência e a indiferença das aiolas coloridas perante a ameaça latente, a violência que se adivinha na tonalidade de um mar que nem parece o nosso. Mas que existe. Vi-o há dias da esplanada do café Martelo. O tempo estava de trovoada e o mar ficou de repente escuro, igual ao céu, igual ao quadro. No muro da antiga lota, pescadores despreocupados conversavam de costas viradas para o mar, um mar que viram mil vezes, um mar que sentem, que adivinham, que está dentro deles.
E não precisam de olhar para o verem, para o sentirem percorrer cada veia dos seus corpos que ao mar pertencem, que o mar deseja, que o mar fascina.
A esplanada do Martelo é um lugar privilegiado, balcão de frente, camarote avançado, varanda imperial sobre o mar, rochedo, farol, cantinho abrigado, com a sua poesia, o perfume das manhãs frescas de domingo, a doçura do crepúsculo, o namoro com o mar, olhos nos olhos azuis do céu e do mar. E ali se junta a freguesia…
As minhas incursões na Galé foram esporádicas no passado, quase sempre à procura do fígado de tamboril do malandro do Maquino. Hoje são mais assíduas, para surpresa do João e da Fátima que descobri agora ser minha parente, afastada mas parente, inegável quando se tem um nome tão pouco comum como o nosso.
Estava tão longe de imaginar este parentesco como de descobrir que o quadro do mar escuro não fora inspiração inventiva mas sim observação, cópia talentosa de uma realidade impressiva. 
São as marés da vida que nos levam a estas e outras descobertas, em manhãs suaves, entre o cafezinho do João, a imensidão fascinante do mar, o alheamento de alguns que lhe viram as costas preferindo ver passar os automóveis, enquanto outros como o Martinho se instalam na mesa do canto, com o mar em frente, com o mar nos olhos, com o mar em si…
O Zé Calisto mora por cima da Pedra Alta, ideia feliz do Chagas ao dar esse nome ao restaurante que foi a loja da minha tia Francisca, irmã da minha avó Sabina, belos nomes de outro tempo. Da sua janela, o meu primo saxofonista acenava-me com um sorriso deste tamanho, sem saber que naquele instante daquela noite, ali no largo, o Helder me falava dolorosamente do pai Chagas. E nenhum de nós adivinhava que, no dia seguinte, o mestre Chagas nos dizia adeus sem esperar pelo Santo António nem pelo verão que ele tanto amava. O Chagas é Sesimbra, é a festa, o arquinho e balão da fantasia, folclore elegante, uma forma de viver que assumiu até ao fim, príncipe da noite que não podia resignar-se a ficar a ver a vida passar por ele, a ver a noite avançar sem ir por ela fora até ao Alfredo, às três da manhã. O Chagas só sabia viver, não era homem para sobreviver.
Como alguns, poucos, o Chagas é uma época, uma figura, um nome, um estilo, uma filosofia de vida, deixou marcas, traços nítidos em todos quantos gostam da noite, do mar e da vida.
A noite acabou e o Chagas foi com ela…
Também do Valdemar a noite foi companheira, amante insaciável que o enfeitiçou, que o embriagou, que o enrolou em fumo mais espesso que o do peixe que agora assa para o Heitor. A medalha de mérito da Câmara é peripécia tardia para um homem da noite, talentoso em mil artes, que podia ter sido isto ou aquilo, navegando noutras águas. Mas assim não teria sido o Valdemar…
Futebolista de classe, bailarino, fantasista, playboy da lota, comprou, vendeu e agora assa peixe. Não faltam professores de moral, pregadores de virtude, mas por mais que digam, aquele homem será sempre mais do que um assador de peixe. É o Valdemar…
E era ali, no largo da Marinha, que o Senhor das Chagas se virava para o mar, abençoando os barcos e os homens, no auge da emoção.
Era o ponto mais alto da fé de uma população que hoje se interroga, mal se atrevendo a exprimir uma convicção. O assunto é delicado, as pessoas falam, perguntam, hesitam, buscam confirmação, esperam esclarecimento, a questão tem de ser posta, alguém terá de responder.
 Mas, no fundo, talvez nem seja importante saber se o Senhor abriu ou não os olhos. Será apenas (e é muito) uma questão de fé. Importante sim é nós abrirmos os olhos para os outros, para a vida, para a beleza das coisas e dos sentimentos, para a tolerância, a fraternidade…
O Senhor não precisa de abrir os olhos para provar seja o que for.
Nós é que precisamos de abrir os olhos, abrir o nosso coração às pessoas e às coisas boas que a vida nos dá.
Abrir os olhos, ver o mar sem lhe voltar as costas, apreciar a imensa felicidade que é uma manhã suave de domingo quando um barquinho sonolento atravessa a baía com as gaivotas à volta e o sol por companhia.
Abrir os olhos apesar do fumo que provoca lágrimas ao Valdemar quando se lembra da lota, quando esquece a grelha e contempla o mar, quando olha para trás, quando fita ao longe a linha frágil do horizonte que separa os sonhos da realidade.
A vida também é fumo, nos olhos e nos braços que às vezes baixamos, cansados de lutar e de sofrer. Mas se abrirmos os olhos veremos outros braços que os esperam, que para nós se estendem.
Abrir os olhos e lutar como a Celestina, procurar motivações, forças novas. Os fins de tarde têm certa magia e foi ao entardecer que voltei a ver a Celestina, junto à capela. Depois chegou a Laura que trazia consigo um ramo de recordações ligadas à loja do mestre Adelino, aos matraquilhos, às sandes de atum do Lopes e a uma janela de onde se vê o mar…
Abrir os olhos para a energia, o entusiasmo da Maria Irene que se juntou a nós, com um sorriso luminoso e uma alegria sentida que nos leva a acreditar na vida, no que ela é capaz de nos dar, mesmo quando o desalento nos invade.
Por isso, não sei se é importante saber se o Senhor abriu ou não os olhos, se deveríamos recorrer a uma peritagem, assegurarmo-nos de que não havia mistificação. No fundo, esta peripécia que perturba e interpela pode servir apenas para nos dizer, a todos quantos vão atrás da procissão e aos outros que viram as costas ao mar e ao próximo, que é preciso abrirmos os olhos e, sobretudo, os nossos corações.
Só amar é importante. Amar e o mar…
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*Publicado em O Sesimbrense de Julho de 1992.   

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