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quarta-feira, 23 de março de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 51



Passa por mim no Central*

António Cagica Rapaz

O café Central foi durante muitos anos o coração da terra, ponto de reunião e de passagem, vizinho do velho cinema, parceiro do Grémio, teatro de partidas memoráveis de bilhar, salão de cavaqueira dos homens notáveis de Sesimbra. O café, qualquer café, era coisa de homens e o Central não fugia à regra, pelo menos no Inverno, já que no Verão a esplanada enchia de cor e animação o largo, num vai-vém entre as imperiais do António Luís e o cafezinho concorrente do Damião.

O Central do Inverno era a atmosfera acolhedora dos domingos de manhã, o vozeirão do Doutor Maurício, o cheirinho da bica que o Sô Zé tirava com tranquila suavidade, o jornal na mão, a barbinha feita, um certo ar de festa, a voltinha ao Espadarte, ver o mar, o mar e o sol, o sol de Inverno.

De Verão, era a sombra do Grémio e das árvores, de manhã, e o colorido dos chapéus de sol à tarde, as rendas das senhoras, a amenidade do crepúsculo e o saltinho ao muro da lota.
Era o ritmo certinho das estações, os Invernos chuvosos, com o Central a ver o pagode passar para a bola ou a sair da matinée do salão.

O Central era ainda a rabeça depois do almoço, com a rapaziada da oficina do Brandão, de fato macaco, laracha pegada, tangerinas saborosas, dois toques em bolas improvisadas, a vila tranquila, a vida desfila em passo vagaroso à imagem do Sô Zé, imperturbável, magnífico de dignidade com os seus cabelos brancos, o olhar doce e malicioso, o porte nobre, verdadeiro profeta, apóstolo dono do tempo, senhor do templo que era o Central.

A magia do bilhar seduzia-me. Olhei com admiração a fina execução do senhor Arménio, o talento genial do Chico Cagica, a arte do Dr. António Vitorino (meu mestre e amigo) e fui treinando manhãs a fio, no café do Chagas onde o bom João do Hospital me deixava jogar, às escondidas, sem pagar. Ia ouvindo o Talismã (o seu programa da manhã) e fazendo bolas a girar, com efeito do lado da cocheira do Fartura, avô do Manel Campino.

O Central era a minha segunda casa. A minha mãe telefonava, à boca da noite, nem dizia quem era, limitando-se a fórmulas simplistas do estilo

«É para dizer ao meu filho que venha jantar». Concisa, sintética e directa. Era assim a Dona Amália. E o Hernâni, o nosso admirável inspector Cachopa, nem precisava de grandes investigações para saber quem lançava o apelo telefónico. Se mãe há só uma, filho um só há. E o veloz Hernâni (belo companheiro dos matraquilhos na tasca do Mestre Adelino) transmitia-me a mensagem. Era outro tempo, outro Central.

Há dias, em fugida curta, passei à porta do Central e voltei a vê-lo como uma igreja sombria, um quarto escuro de casa antiga com um oratório em cima da cómoda e um relógio de pêndulo de tic-tac monótono que só dá horas sem sorte…

O Julião chamou-me e encostei-me à montra como anos atrás. O António Luís lá estava, ao balcão, enquanto o Cândido ia e vinha. Noutro tempo, o Cândido folgava à quarta-feira e ia à pesca. O Hernâni talvez preferisse os romances policiais enquanto o António da mercearia nem parecia folgar pois estava lá sempre, entre duas postas de bacalhau demolhado e um quilo de açúcar amarelo. O meu primo Rui (do João Mota) por lá passou e fez das boas a uma pobre surda que nem sonhava o que ele lhe dizia ao fingir falar de linguiça e de feijão fradinho.

Com o Julião estava o João Mau, professor primário, filósofo da Pedra Alta, herói de guerras lendárias entre seitas desta e daquela banda, refém amarrado à porta do cemitério, companheiro fixe, inesquecível intérprete da célebre peça na qual o Jonas lhe dizia «Obrigado João, és um bom rapaz, arranjaste umas velas para o meu moinho».

A famosa réplica «Ninguém» do Romeiro, no Frei Luís de Sousa, não é nada comparada com a tirada do Jonas. Era na Vila Amália, era a Mocidade, era a nossa mocidade, era o João Mau que um dia abalou para a Suécia, com o António Júlio e o Jorge Martelo, três mosqueteiros, três aventureiros que regressaram como Ulisses voltou a Ítaca. O João Mau foi anticonformista, rebelde, contestatário, mas um coração puro e uma generosidade autêntica.

Juntou-se-nos o Alfredo Filipe e a malandrice insinuante veio com ele, agravada com a chegada do Ernesto Corneta, seco de carnes, pronto para proezas que tenho pudor de revelar, porque sou tímido por natureza, sisudo por parte do meu pai e pouco abelhudo por banda da minha mãe que (não sei se sabem) costumava telefonar para o Central. Ah, já tinha dito?

Desculpem lá, «tenho andado com a cabeça tão esvaída», como diz a Judite, prima da minha mãe que costumava... Pronto, pronto, não se fala mais nisso!

Esta visão de um Central sombrio pode vir da minha imaginação em dia cinzento. E o que pensará, talvez, o Quim, do João Alemão, ao ler estas linhas em Agosto, com Sesimbra cheia de cor, de movimento, algazarra, azáfama dos mil comerciantes que a terra tem, boutique sim, restaurante não, carros em cima dos passeios onde já não se passeia só se passa, entalado entre a Fortaleza incontornável e a modernidade que nos asfixia.

Na oficina do Brandão já não estão o Doze nem o Chico Diabo a quem eu pedia esferas para jogar às bolas, cabos de palheta que até estalava.

Era no tempo em que a oficina cheirava a mar, com os pescadores que vinham ver se o motor estava arranjado, antes de abalarem até à longínqua doca, estafa garantida, à torreira do sol, marginal adiante que só começava a descer depois do Álvaro Tanoeiro.

A oficina hoje é o comércio moderno, montras coloridas, gente que se cruza e se acotovela ao som da música que substituiu a cadência da bigorna e do martelo e de luzes menos cintilantes que as do bico de soldadura.

Felizmente lá está a minha adorável amiga, fada maravilhosa dos produtos biológicos, tão naturais como o seu sorriso luminoso.

Esta metamorfose da Oficina é a grande mudança que Sesimbra sofreu. Para melhor, para pior? É difícil dizer, é assim, é inevitável, é a vida que passa por nós como nós passamos pelo Central.
Eu passei e olhei, para dentro e para trás, até ao fundo das recordações.

O Augusto do «Salva-Vidas» também por lá passou e com ele a evocação de outras peregrinações entre o campo do Desportivo e a doca, com paragem na Capitania. E aqui tens, João António Carapinha Chagas, caro João Mau, como nascem estas crónicas breves, escritas (como disse recentemente) ao correr da pena que tenho de não saber fazer melhor.

É assim, é o mar que chama por mim. O mar, o Central e o Manel que está comigo em todas, do Caneiro à Doca, este magnífico Manel António, chamador das ruas do silêncio que teria gostado que eu falasse aqui das lições do Pila («amanhê», «despois d’amanhê») do mano a mano entre o Ernesto (com a peixaria) e o mestre Zé Brandão a abrir a porta da oficina. E do fantasma chamado Leonarda que aparecia no Grémio, ali à beira do Central, este Central que se vai perdendo na bruma do tempo, como barco engolido pelo nevoeiro. Este Central que me dizem estar em vias de trespasse, palavra ambígua que significa mudança comercial e também morte. Talvez por isso vi um Central escuro, de fumo na montra e noite da alma. O Central está de luto, pela esplanada que era um pátio de cantigas e sonhos de Verão, um teatro de comédias de arte estival, palco, feira de vaidades um pouco, mas mais que tudo quadro admirável de cores vivas, os grandes chapéus de sol, os vestidos das senhoras, o encanto discreto de um tempo trespassado.

O Central está de luto pela lota, pela doca, pela vila, pela vida, por nós, pela nossa juventude, pelas nossas ilusões. O Central era o coração de Sesimbra e está cansado, arrasta-se como os últimos passos do Sô Zé, carregados de anos e melancolia, como os velhos que, nos bancos do jardim, contam as badaladas do sino da igreja de cima, até lhes tocar a vez, a finados.

Entretanto, Manel, vai passando no Central. Lá ficou um pedaço de mim…

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*Publicado em O Sesimbrense de Agosto de 1991.

1 comentário:

  1. Sim, este foi o Central que eu conheci e que, meio século passado, me foi trazido à memória graças à tremenda capacidade de, num texto escorreito e limpo de intelectualidades balofas, o Tó Manel (era por este nome que o conhecia) tinha de tão bem descrever a sua terra e as suas gentes. E como ele as conhecia bem! Que falta fazes, ó Mestre. Até sempre.

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