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quarta-feira, 16 de março de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 50



A medida das coisas*

António Cagica Rapaz

Desde que o Mundo é Mundo o Homem interroga-se sobre o sentido da vida, de onde vimos, para onde vamos, a felicidade, o destino, a fatalidade, o acaso, Deus e o Diabo.

Questões várias e profundas que têm sido tratadas por filósofos, cientistas, pensadores, estudiosos, curiosos, magos, iluminados, aprendizes de feiticeiro e, até hoje, ninguém conseguiu apresentar uma tese totalmente convincente, que responda satisfatoriamente às dúvidas de cada um de nós.

E assim ficamos na nossa, acabando por adoptar a filosofia de vida que nos convém, o que no fundo não será pior pois se houvesse um padrão único a liberdade individual ver-se-ia limitada ou condicionaria o comportamento.

Nós temos uma estrutura de base e somos sujeitos a influências que começam no seio da família, depois na escola, alargando-se o círculo aos diversos meios que frequentamos. Da nossa infância conservamos rastos e restos dessas influências que nos acompanham toda a vida. Há pessoas que nos marcam para sempre, mesmo depois de deixarem o nosso convívio.

Sempre senti a necessidade de personalizar os modestos conceitos que trago em mim, sempre pensei que as pessoas são o que de mais importante existe na nossa terra, na nossa vida. Ao longo destes anos tenho-vos falado da nossa terra através da nossa gente, das pessoas que nela vivem, que por ela passaram, que dela gostam como eu gosto.

O meu primeiro artigo num grande jornal («Diário de Lisboa»), em 1971, consagrei-o ao Fragata. Noutros, sempre que pude, falei no Capitão Domingos, no Alfredo, no Deodato, eu sei lá, por prazer, para lhes dar prazer, porque me fazia bem e a eles também. Na «Gazeta dos Desportos» foi o Vítor Baptista e foi sempre com a mesma sinceridade que procurei dar destaque a pessoas que, por isto ou por aquilo, me inspiravam esse desejo.

Alguém me disse um dia que cada um desses escritos era um acto de amor. É verdade que sim e hoje tenho uma consciência mais nítida dessa realidade. Amar o próximo era o que nos ensinava o Padre João, esse homem maravilhoso que continua nos nossos corações.

Para a maioria das pessoas é difícil amar os outros, amar a Natureza, amar as coisas belas. Porque são egoístas, em alguns casos, ou simplesmente porque não sabem, nunca aprenderam. Amamos algumas pessoas e somos mais ou menos indiferentes a outras.

Durante muitos anos vi os outros através de um prisma selectivo, defini certos padrões e avaliei as pessoas à luz desse critério. Gostei muitos de alguns por esta ou por aquela razão, sem aprofundar, e não gostava de outros apenas por este ou por aquele motivo, sem ir mais longe. E isto assumido de forma totalmente honesta, sincera e convicta.

Cometi assim um erro enorme que muita gente comete, que é o de tomar a parte pelo todo, sem ver que nenhum de nós é um bloco monolítico, que não somos só isto nem só aquilo, que somos isto talvez mas também somos ou podemos ser outra coisa, pois ninguém tem só defeitos nem só virtudes.

Podemos não suportar alguém por um motivo sem ver que essa pessoa (embora possa ter de facto esse defeito) pode também ter qualidades que nós nem procuramos descobrir. E quando as vemos não lhes damos o justo valor, obcecados pelos nossos preconceitos ou juízos prévios. Por isso é preciso abrirmos o nosso coração, para não gostarmos apenas de alguns mas de todos, o que não impede preferências que são naturais.

A vida é por vezes cruel e fere-nos dolorosamente. A dor traz consigo um sentimento de revolta, de injustiça, de incompreensão. Olhamos para trás, lembramo-nos das palavras do Padre João, duvidamos de tudo e de Deus, ficamos à espera que respondam à nossa interrogação «Porquê». Porquê nós, porquê agora, porquê assim?

O Cristo na cruz permanece calado, o mar silencioso, o céu distante e a vida à nossa volta prossegue sem se deter.

De repente, alguns que nos olham serão capazes de tomar enfim consciência de que são felizes há muitos anos, sem saberem. Felizes por terem uma vida normal, banal, sem dramas, com saúde, sem sobressaltos. Vão e vêm, estão vivos, estão juntos, comem, dormem, passeiam, até ao Espadarte e acham isso tão normal que nem apreciam. A esses eu sugiro um momento de reflexão que os leve a apreciar devidamente a felicidade que têm. E a todos desejo que, nas horas difíceis, se as tiverem, vos apareça um amigo como o Manel António que veio sem eu chamar, que sofreu por mim e comigo, que me ensinou a abrir o coração, a amar por inteiro, a sentir mais e a pensar menos, a olhar os outros, todos, com amor, a ver neles o todo e não apenas uma parte.

Estou a sair do abismo, sinto-me renascer porque hoje vejo os outros.

Não só olho mas vejo. Vejo que alguns mudaram, talvez, para melhor, mas eu próprio mudei, vendo neles o que têm de melhor.

É a dura experiência da vida, do sofrimento que deu lugar a algo de novo, que dá outro sentido à minha vida.

O amor é a medida de todas as coisas, diz o poeta. Mas o amor sob diversas formas, que nos leva a gostar das pessoas mas também das coisas, a admirar a beleza, a ser sensíveis aos pequenos nadas que são a essência da vida.

Esta abertura, esta disponibilidade, esta bonomia leva-nos a um maior equilíbrio e a uma grande serenidade.

Perante esta transformação, de novo interrogo Deus para tentar compreender e penso no Padre João que me fazia ler epístolas e parábolas na missa das crianças. Como gosto de parábolas, sempre vos digo que por vezes percorremos um caminho sem nos apercebermos da beleza que nos rodeia. A nossa sede de aventura leva-nos a olhar em frente, ao longe, em busca do infinito, quando o ideal estava ali mesmo, a nosso lado.

Longe não é no fim do mar. Longe é aqui, à nossa porta, quando não sabemos ver. Mas nunca é tarde…
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* Publicado originalmente em O Sesimbrense.

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