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segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 46




Álcool ou sublimado

António Cagica Rapaz

Tudo nesta vida tem um fim e, por vezes, dou por mim a pensar que não soubemos apreciar devidamente a destreza do mestre Adelino, a carícia do pincel carregado de alvo sabão, o gesto preciso no afiar da navalha, as palestras eruditas sobre o contra-ataque ou a diagonal do Otto Glória.

Talvez não tenhamos dado a devida atenção à maestria com que o patrão Adelino manejava a navalha, com a desenvoltura de um espadachim de opereta. Mal dávamos por nós e estava-se no último acto, escanhoados a rigor e a braços com a temível e derradeira opção: álcool ou sublimado?

Tenho passado noites em branco, vasculhando a memória, forçando a imaginação, sem conseguir encontrar um motivo, um só, que me tivesse levado a recusar sempre o sublimado. À sacramental e dilacerante pergunta, a resposta saía pronta, tonta, precipitada, como quem confessa logo para ter perdão ou castigo mais leve. E era sempre álcool... Porquê?

É verdade que era fresquinho, agradável e dava direito a umas palmadinhas suaves que o mestre nos aplicava com a toalha macia, a rematar a operação. O meu drama é não saber por que recusei sempre o sublimado que tinha pouca saída, como as raparigas menos bonitas que ninguém ia buscar para dançar. Este sublimado é a minha frustração, o brinquedo que não tive pelo Natal, o filme que não consegui ver no Salão, a bola que não me saiu nos rebuçados do Chico da Cooperativa, a máscara que não consegui identificar no baile do Carnaval, um sabor a fracasso sem remissão. Álcool ou sublimado é o refrão de uma cantilena de outro tempo em que as tardes de sábado eram deliciosas e compridas. Ninguém tinha pressa, jantava-se tarde, amanhã é domingo...

Na barbearia havia quem desse a vez para ficar mais um bocado, pela boca da noite adentro, preso à sedução de uma cavaqueira apetitosa, às rábulas do Raúl, aos picantes rumores das comadres, às pantominas que tornavam a barbearia num palco de revista saborosa. As camionetas do peixe subiam a ladeira vagarosamente, Lisboa era longe, a vida era tranquila...

1993

1 comentário:

  1. Outros tempos, em que a barbearia era um local de convívio...
    Lembro-me de, em adolescente, ficar horas a ouvir os "jogos florais" entre o barbeiro, Armando Santos, que era também o único fotógrafo da terra, além de actor e encenador de teatro e outra figura inesquecível, o Anhuc, palhaço "residente" do Coliseu de Lisboa!
    A barbearia era pequena para o número de pessoas que esgotavam a lotação e ocupavam todo o passeio!

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