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segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 45




Flauta

António Cagica Rapaz

Os concertos ocupavam um lugar importante na sua vida, como os fins-de-semana na Praia das Maçãs, a leitura do “Expresso” ou as peregrinações à Feira da Ladra. O concerto era um ritual sagrado, a música envolvia-o, transportava-o, iluminava-lhe o espírito. E dava por si a percorrer com o olhar os diferentes instrumentos, ouvido nítido, identificando sons, antecipando gestos, acompanhando movimentos, reconhecendo inflexões, integrando-se apaixonadamente no universo mágico da música, participando na transfiguração do real quando a orquestra tão depressa lhe parecia emergir das brumas tenebrosas da Escócia como integrar o recorte primaveril de um jardim da Florença.

Sucederam-se as temporadas, sempre no mesmo enlevo, até que, uma noite, o ouvido assinalou, o olhar fixou, o mundo parou. A flauta. Era isso, a flauta, alada, etérea, claríssima, sussurrante, eco de seixos lisos, o ondear fascinante dos cabelos loiros, os lábios doces num sopro suave...

Passou a sentar-se cada vez mais perto do palco, olhos e ouvidos concentrados. Apesar do deslumbramento, ainda foi capaz de observar, com um sorriso, o cerimonial do aperto de mão entre o maestro e o primeiro violino, no início de cada peça e no auge dos aplausos.

Voltou a procurar com os olhos, com todos os sentidos bem apurados, a flauta. Percorreu com ela prados inenarráveis, viu esquilos, duendes, diabinhos atrevidos, cupidos dissimulados, arco-íris, lua cheia, crepúsculos de púrpura e de infinito. E aquela cabecinha loira, aqueles lábios em eterno movimento meigo...

Um dia resolveu esperá-la à saída dos artistas. Comprara um ramo de orquídeas (um bouquet, precisara a florista) e imaginava-se, com delícia, prostrado à sua passagem, deixando que sobre o seu corpo impuro ela caminhasse, serena, graciosa, flauta na mão direita, o vestido branco dispersando as folhas que a brisa da noite fazia esvoaçar.

Sobressaltou-o o ronco medonho de uma moto infernal, e viu a sua deusa enfiar um capacete na bela cabecinha loira, ajustar o blusão de cabedal preto e abraçar com ternurento vigor o tronco do seu companheiro. E a moto arrancou com fragor.

Depositou, melancolicamente, o bouquet na relva e perdeu-se na noite.

Passou a comprar “O Independente” que leva, à sexta-feira, à noite, para a Praia das Maçãs, e vai menos à Feira da Ladra.

Ultimamente, foi visto a jantar, no Bairro Alto, com uma colega do escritório de advogados...

1998

1 comentário:

  1. Bem me parecia que já me tinha cruzado com este senhor...
    Passei por ele junto a uma "Janela com Escritos"...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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