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segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 44




Quotidiano

António Cagica Rapaz

O telefone tocou com o mesmo som irritante dos outros dias, o mesmo sinal perturbador de sempre. Todavia, desta vez, parecia haver algo de inquietante naquele som estridente.

O senhor Alexandre olhou o aparelho como se o visse pela primeira vez. Estendeu o braço, mas logo deteve o gesto, ficando a olhar o telefone. Nos olhos lia-se toda a angústia que o invadia naquele momento. Os colegas do escritório olhavam-no num silêncio absoluto. Era normal o telefone tocar àquela hora, a todas as horas. Mas se os telefones tivessem alma tocariam de acordo com as mensagens que vêm trazer. E aquele telefone parecia ter alma pois o som arrepiante continuava. Ninguém se atreveu a abrir a boca para dizer ao senhor Alexandre que levantasse o auscultador. Todos estavam possuídos do mesmo estranho terror. Por fim, o senhor Alexandre pegou no auscultador. Houve um suspiro geral de alívio, mas a expectativa não terminou. Pelo contrário, aumentou à medida que o rosto do senhor Alexandre ia exprimindo a preocupação progressiva ditada através do nefasto aparelho. O seu pressentimento tinha, infelizmente, confirmação.

O senhor Alexandre pousou o auscultador, lentamente, como se não tivesse força para o aguentar na queda. Ao desligar o telefone, como que se desligou a ele próprio de algo muito caro, de muito importante na sua vida. Sem uma palavra, levantou-se, pegou no casaco e dirigiu-se para a porta. Um colega correu para ele e perguntou o que se passava. O senhor Alexandre, com voz fraca, apenas pronunciou: - A patroa... E saiu, fechando a porta de mansinho, como se tivesse receio de acordar alguém que já dormia o sono de que se não desperta.

Passados uns dias, o senhor Alexandre ocupava, de novo, o seu lugar no escritório. O telefone tocou. Todos os colegas se voltaram como se uma força misteriosa os impelisse. O senhor Alexandre olhou o aparelho, fechou os olhos por uns momentos e, com firmeza, pegou no auscultador. Falou com a sua voz calma e tratou o assunto. Os colegas recomeçaram a trabalhar, mais tranquilos.

À hora do almoço, o senhor Alexandre pediu desculpa aos colegas por não os acompanhar, como era habitual, e afastou-se, apressadamente. Quase à esquina, ainda o viram comprar um pequeno ramo de flores e apanhar o eléctrico. Quando regressaram, já o senhor Alexandre se encontrava no seu lugar, trabalhando, em silêncio. Tinha os olhos vermelhos...

Durante a tarde não trocou uma palavra com os colegas. Ao sair, recusou delicadamente a boleia que lhe ofereceram e seguiu a pé, lentamente, o olhar perdido no céu que perdia o seu azul. Não tinha pressa de voltar para casa, a noite adivinhava-se sombria. Caminhou durante muito tempo ao longo do Tejo, até parar, olhando os barcos carregados de pessoas apressadas em regressar aos seus lares. Sentiu-se perdido, no meio daquela gente com que se cruzava, evitando-o como um impecilho. Sentiu-se só, dolorosamente só. As pessoas continuavam a passar, os barcos sucediam-se. As luzes já se acendiam, a noite abria os seus braços, espalhava a sua fascinação enquanto o rio ia ficando negro, como o telefone, como o fundo da noite, como a sua vida vazia. Sentou-se na muralha e olhou as águas. Por um momento, o olhar ficou-lhe preso naquele pedaço de madeira que seguia, silencioso e suave, levado pela corrente. Despertou, sobressaltado, quando lhe tocaram no ombro. Virou-se, num impulso, e viu um miúdo com um jornal da tarde na mão.

- Senhor, compre-me este jornal, é o último...

Recusou. Que lhe interessava o jornal? Que lhe interessava o mundo, a vida? O miúdo insistiu:

- Senhor, traz o escândalo, o dopping do Agostinho...

Ele não sabia do que se tratava. De súbito, deteve-se na contemplação do menino. Teria uns nove ou dez anos, um olhar límpido, um rosto expressivo, os cabelos loiros. Adivinhava-se a inteligência, via-se a miséria.

- Está bem, dá cá. Olha, já agora, diz-me, almoçaste hoje?

- Não, senhor, só comi um bocado de pão esta manhã.

- Então, anda daí, vamos jantar os dois, queres?

- Quero, sim senhor. Obrigado.

- Mas com uma condição, tens de me contar aquilo do Agostinho.

- Então o senhor não sabe? Não tem estado cá?

- Não. Tenho andado longe, muito longe daqui...

O senhor Alexandre sorriu. A noite estendia o seu manto sobre as águas tranquilas do Tejo...

Record, 1972

2 comentários:

  1. a vida também precisa de "doping"...

    mesmo que seja o garoto com o último jornal.

    sublime.

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  2. Como são indispensáveis os pequenos ardinas loiros, em determinados instantes da vida!

    Belíssima crónica.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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