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sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

CONFRARIA MÍNIMA, 43

as crónicas da Eventos...

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Apalpando rábulas*

António Cagica Rapaz

Despedimo-nos de 2001 abordando um tema grave e transcendente (Deus) para entrarmos neste novo ano a brincar, talvez para variar, quem sabe se por efeito perverso da capicua 2002. Muitas vezes caímos na facilidade da generalização, afirmando que os portugueses são sorumbáticos, tristonhos, vergados ao peso do Fado. Não sei se será bem assim, antes me parece que somos é mais de marés, de altos e baixos, de quartos crescentes e minguantes. O que não impede que tenhamos uma admirável veia irreverente, espontânea e bem humorada.

Em Sesimbra sempre se cultivou a brincadeira, a paródia, a chalaça, a partidinha marota, dentro e fora do período carnavalesco. Brincar e jogar são faces da mesma moeda, verbos diferentes que noutras línguas são um só, para significar várias coisas. O francês jouer, tal como o inglês play, tanto querem dizer brincar, como jogar, como tocar um instrumento ou representar um papel no teatro ou no cinema.

Na nossa terra sempre se brincou e jogou, à bola, ao alho, ao prego, ao ringue, às linhas, às bolas, ao arco, ao ping-pong, às cartas, aos matraquilhos, ao bilhar, ao não-te-irrites, às malhas, às prendas, à berlinda ou ao passarinho de alcatrão. Brincava-se no Verão, na praia, nas ruas enfeitadas, à volta da fogueira, e, em particular, pelo Carnaval.

Salvo erro, foi Napoleão que disse que o melhor da História são as anedotas, ou seja, as peripécias engraçadas. E a verdade é que, com a passagem dos anos, nas cavaqueiras entre amigos, vamo-nos apercebendo de que as brincadeiras da nossa mocidade constituem o núcleo mais persistente das nossas recordações.

De facto, se é verdade que na nossa vida há um tempo para cada coisa, sem perdermos a noção das proporções e das conveniências, não é menos certo que não vale a pena levarmo-nos demasiado a sério pois tudo é efémero. Por isso, a tradição da brincadeira se tem mantido, embora vá assumindo formas diferentes, os tempos são outros.

Em Sesimbra, o Carnaval era o palco natural da paródia, com as partidas clássicas dos rabos, dos badalos, dos telefonemas misteriosos, dos pós de espirrar e tantas outras.

Porém, o que sempre me apaixonou foi o repentismo, o rasgo súbito da fantasia, da improvisação ditada pelas circunstâncias do momento. Por vezes, havia alguma pontinha de maldade, mas é mesmo assim, tem de haver uma vítima. Certa vez formei parelha com o J. que colocava, silenciosamente, no chão uma lata de conserva amarrada a um cordel que, na outra extremidade, tinha uma mola da roupa. O meu papel era prender essa mola no casaco da “vítima” que ia arrastando a lata, para gozo da malta. Um de nós ia acompanhando e, se a marosca era detectada, pisava a lata. A mola caía, recolhia-se o cordel, apanhava-se a lata e desandava-se rapidamente. Às tantas, o belo J. aspirou a maior protagonismo e quis ser ele a prender a mola. Ainda estou a ver, foi junto aos degraus do adro da farmácia de cima, a “vítima”, uma mulher de língua afiada. O J. aproximou-se pé ante pé, braço tenso, gesto cauteloso. No momento em que ele ia cravar a bandarilha, ou seja, prender a mola no cinto do casaco, eu não resisti. Velhaca e traiçoeiramente, atirei a lata aos pés da mulher que se virou, num salto de susto e surpresa. Ao ver o J., de mola na mão, boca aberta de medo e de raiva, a “vítima” arrematou-o dos pés à cabeça, sugerindo mesmo sítios onde poderia enfiar a mola. Confesso e reconheço a deslealdade, mas foi um momento inesquecível, a partida dentro da partida, coisa infame que me passou pela cabeça. Mas que gozo me deu!

Numa tarde de 3.ª feira de Carnaval, em 1967, na esplanada do Central, a ideia surgiu, inesperada e fulgurante. Meia hora depois, da arrecadação do pai Rasteiro, saía um grupo de turistas estrangeiros de visita a Sesimbra, com um guia-locutor (um japonês ia filmando para a TV) e um pescador-intérprete “pilaglota”. Tudo começou com uma entrevista ao velho Jul Mouco, à porta, perante a curiosidade dos populares (como dizem na televisão) que começavam a juntar-se. A seguir descemos até à nossa tertúlia, a taberna e a barbearia do mestre Adelino, palco e fonte de mil malandrices arrebatadoras. A rua chamava por nós, o cortejo engrossava, a pantomina assumia proporções delirantes. E fomos andando, parando aqui e ali, interpelando este e aquele, dando rédea solta à nossa imaginação e à nossa irreverência. As ruas encheram-se de gente, intrigada, suspensa, seduzida, na expectativa de piruetas, réplicas e tréplicas, tudo ao sabor dos encontros e da nossa louca improvisação. Foi um triunfo retumbante, uma imensa paródia, uma tarde memorável. Felizmente, restam as fotografias, já que o microfone era uma batata com um fio de cordel e a máquina de filmar do “japonês” uma caixa de papelão com um canudo…

Um ano antes, o almirante Américo Tomás veio inaugurar a Marconi, e o cortejo, ao descer, passou em frente do Espadarte, interrompendo o restante trânsito. Na circunstância, vinha o Manel António a meu lado, no jipe que o Carlos Farinha tinha a bondade de me emprestar. De repente, mal o cortejo acabara de passar, enfiámos atrás e eis que o Manel se põe de pé, toalha enrolada na cabeça em genuíno turbante, e braços abertos, agradecendo os aplausos que os “populares” continuavam a dispensar à comitiva. A poucos metros dos últimos motociclistas, a brincadeira podia ter saído cara. Mas correu tudo bem e foi outra rábula saborosa, repentina e ousada. Era um tempo feliz que nós saboreámos com a avidez de quem pouco tinha, a não ser o sol, o mar, alguma fantasia e uma bela amizade. Hoje, a caminho dos sessenta anos, como fugir a alguma nostalgia dos anos sessenta? Felizmente, graças aos desafios deste e de outros Eventos, graças sobretudo a um grupinho admirável que estamos a consolidar, alguns de nós vão envelhecendo mais devagar, com um sorriso, recordando aventuras, revivendo brincadeiras, apalpando rábulas…

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* Publicado no n.º 17 de Sesimbra Eventos, de Fevereiro/Março de 2002.

2 comentários:

  1. a alegria é fundamental, especialmente nestes tempos.

    há uns anos (quase vinte) costumava passava a noite de Carnaval em Sesimbra, primeiro no Pavilhão e depois na "Sesimbrense" (sem saber da sua história, na época...)

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  2. Brincadeiras saudáveis, espontâneas...
    E ninguém a filmar com o telemóvel para colocar no YouTube...

    Agora o Carnaval é basicamente uma imitação foleira de costumes que nada têm a ver com a nossa cultura.
    Nem com o clima...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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