__________________________________________________________________

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

CONFRARIA MÍNIMA, 42

as crónicas da Eventos...



Feijão com arroz em tacho de barro*

António Cagica Rapaz

Muitas vezes, se calhar sempre, o mais importante não é o acontecimento, mas a imagem que dele formamos no nosso espírito, antes e depois. E neste universo gastronómico, cada um de nós tem as suas recordações e as suas referências. Todos conservámos lembranças nítidas de confraternizações à volta de uma mesa, de uma fogueira, a bordo de um barco ou à sombra de um pinheiro. E conservámos, sobretudo, a imagem das pessoas que nos rodeavam…

A minha infância foi, a espaços, povoada pelas narrativas do meu pai que, entre mil outras coisas, evocava, com saudosa frequência, homéricas e pantagruélicas almoçaradas em que, curiosamente, a comida quase ficava na obscuridade, ofuscada pelo envolvimento afectivo, pelo calor e fulgor da descrição dos preparativos, do ambiente de companheirismo, de pândega fraternal que ganhava esplendores de expedição quando o cenário era o mar e a cerimónia tinha lugar a bordo, no Calhau ou na fascinante lonjura da Arrábida.

Ao domingo, depois do jantar e dos comentários do Lança Moreira, o meu pai ficava à mesa, falava, contava, reconstruía a vida, travejava o tempo. Eu conhecia de cor, não me cansava de ouvir os nomes dos corsários da caldeirada, Franco, Abel Embaixador, Duque, Manilhas, Zé Espada, Artur do Raça ou ainda o sublime Antero do Pão que encerrava as festividades com anedotas, partes gagas e relatos hilariantes. A rábula do camponês e do mestre Rabuge é de antologia, incontável agora, irrecuperável, única, teve o seu tempo, o seu lugar, o seu intérprete, morreu com eles…

Mas, no fundo, será realmente importante definir o que é uma boa caldeirada? Interessará mesmo saber se devemos ou não cozer as batatas à parte? Será útil explicar por que é aconselhável utilizar pequenos recipientes e não um panelão grande, à pescador? Para quê afiançar que o melhor da caldeirada é o fígado de tamboril?

Em verdade, tudo isso é secundário, pois o verdadeiro e supremo valor deste tipo de refeições é constituir um pretexto para convívio. De facto, quando buscamos pormenores de repastos memoráveis, depressa nos apercebemos que eles estão, sobretudo, ligados a pessoas, locais e épocas da nossa vida. O acto de comer não é, em regra, um prazer solitário, antes se enquadra num espírito de partilha e de comunhão, num envolvimento afectivo de que nos ficam, algumas vezes, imagens inesquecíveis. O cenário não é indiferente, naturalmente, mas não é essencial. Uma barca ao largo em dia de sol é sempre um deslumbramento, é verdade. A Arrábida ainda é um cantinho do paraíso, mas o prazer maior é estar com as pessoas de quem gostamos. Por essa razão, nos ficam a todos, cada um as suas, recordações de sabores, de cheiros, de atmosferas que o tempo não apaga. No meu espírito, a carne assada da dona Fernanda, em domingos de Inverno, na Cotovia, representa muito mais do que um primor gastronómico. É um marco no tempo, símbolo de uma generosidade que nunca esquecerei. As sardinhadas ou os carapaus secos na adega do Jorge pertencem a outro registo, igualmente inolvidável, mas de outra natureza.

Da infância, ficou-me o sabor inigualado do feijão com arroz, feito em tacho de barro, da sopa de fava, das fatias albardadas e das costeletas panadas, especialidades da minha mãe. Mais tarde, pelos anos fora, há inúmeros episódios marcantes, desde as bacalhauzadas da vindima até às maravilhosas consoadas em casa do tio Nuno. Pelo caminho fica aquela dobrada comprada na Virgilinda e comida na Maçã, com o Manel Galinho, em casa desse maravilhoso amigo que é o Raúl. Era domingo, chovia e seria mais indicado peixe seco. Mas calhou assim, foi decidido à esquina do Central, e teve o sabor dos impulsos e desejos repentinos.

Recordo ainda o Mário Martelo a grelhar, salpicando com um raminho de salsa a melhor posta de cherne que comi até hoje. O Eduardo trouxe o sublime exemplar para aquela noite de Verão iluminada pelo fogo de artifício da presença da Pepita, no pequeno arraial do quintal do Mário.

Quando vivia em França, e sempre que vinha a Portugal, raramente deixava de jantar com o Manel António, no Bairro Alto, bebendo o ar, comendo o céu de Lisboa, em momentos mágicos de celebração, com uma exaltação que era mais habitual no Manel mas que, nessas ocasiões, era muito provocada por mim, feliz por estar ali e com ele. Era uma verdadeira festa, com o pão e o vinho da nostalgia mais os enchidos da saudade. E uns “joaquinzinhos” que nos levaram a dar uma aula de gastronomia a todos os presentes, naquela abençoada euforia que nos invade em momentos raros da nossa vida. Hoje, objectivamente e sem qualquer parcialidade afectiva, garanto que ninguém faz uma caldeirada, um cozido à portuguesa ou sopas como a Dona Romilda…

Numa óptica menos pessoal e em termos institucionais, pode afirmar-se, sem a menor hesitação, que o cartaz gastronómico de Sesimbra é o peixe, sob forma de caldeirada e de peixe grelhado ou assado, como é mais corrente dizer-se. Paradoxalmente, este peixe assado pode ser um prazer solitário quando nos sentamos à porta, no passeio, à sombra, com o fogareiro ao pé, assando e comendo, comendo e assando petingas, enquanto ao longe se ouve o fado e o mar é um imenso espelho de prata.

Durante longos anos, a maioria das famílias comia sopa, feijão com massa, magras couves, e peixe seco no Inverno, sendo a carne apenas para privilegiados. O chouriço na sopa constituía o único luxo, dava gosto e prolongava a refeição. Aconchegado numa carcaça, convidava a um copito na taberna, antes de uma partida de “não-te-irrites”, esperando o fim do vendaval. É uma imagem, mais uma, esta que me ficou da taberna da minha avó…

Mas o cenário ideal da gastronomia em Sesimbra é o das ruas enfeitadas, um pouco como nos banquetes que encerram cada aventura do “Astérix”. Noutro tempo, o Carnaval era preparado com imaginação, fantasia e febrilidade, na concepção dos trajes e na urdidura dos enredos. Depois, vinham os Santos Populares e era a busca do tema para enfeitar a rua, num trabalho de equipa que aproximava as pessoas, criando uma atmosfera de presépio a cada porta. À volta das fogueiras, havia rasgos de polvo, sardinha assada, caldeiradas e canções de roda.

No Verão de 1969, na rua Joaquim Brandão, um grupo de rapazolas de uma barca teve a simpática ideia de jantar à porta da loja. Indo a passar, com um grupo de amigos, fui convidado e não hesitei. Ainda hoje recordo, com nitidez e prazer, aquela agradável jantarada. Comemos chaputa e imperador, foi uma assada deliciosa, eles ficaram contentes, eu fiquei feliz, foi espontâneo, foi saboroso, era assim Sesimbra.

Ali bem perto, o Deodato e o capitão Domingos fritavam lulas pequeninas, preparavam choquinhos com molho à pé descalço, sob o olhar divertido do Alfredo, enquanto do outro lado da rua, o tio Mário, pai da Celestina, tinha sempre marisco escolhido e um sorriso cúmplice iluminado por uns olhos da cor do mar.

Em Sesimbra comia-se no poial da porta, no passeio, no quintal, na loja de companha, a bordo da barca, com naturalidade, sem pressas nem aviso prévio, chegava sempre para mais um, franqueza à mesa. Se calhar não era bem assim, mas é o que nos ficou ou o que nos apetece recordar. A vida era tranquila, havia tempo, e o mar era um festival permanente com o colorido da chegada das traineiras escoltadas por mil gaivotas numa algazarra que chegava à Galé onde o Márinho fez apetitosas sopinhas de pelim que o Júlio Galgão ainda evoca com alguma melancolia.

A Galé continua a ser um porto de abrigo da amizade e, quando não há almoçarada na loja do Eduardo, lá estão o João e o Paulo a tentar-nos com irresistíveis lambujinhas e mexilhões. O segredo é esse, estamos com a nossa gente. Ainda por cima, é mais que barato, é dado, porque o mar a perder de vista e o céu azul estão incluídos no preço…

____________
*Publicado no n.º 13 de Sesimbra Eventos, de Junho/Julho de 2001.

3 comentários:

  1. Foi o António que me fez descobrir o caminho para a Galé!
    Morador recente em Sesimbra, foi rota que nunca mais esqueci...

    ResponderEliminar
  2. boas memórias da nossa gastronomia e do nosso convívio à volta de uma mesa, que até pode nem existir...

    ResponderEliminar
  3. Por aqui se vê como o coração do Cagica era dum tamanho desmedido. Lá dentro cabia este mundo e o outro. E sobrava espaço para qualquer eventualidade...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

    ResponderEliminar