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sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

CONFRARIA MÍNIMA, 41

as crónicas da Eventos...




Em sede de pedantaria*

António Cagica Rapaz

É perfeitamente natural, compreensível e mesmo desejável que a nossa língua evolua, e tal vem sucedendo por influência de outros idiomas e pela introdução de neologismos ditados pela modernidade tecnológica.

Todavia, é com algum desconsolo que assistimos ao empobrecimento da língua portuguesa, e muito por culpa das individualidades que ocupam os écrans e monopolizam os microfones. Bem ou mal, são essas figuras que ditam as modas, lançam palavras e expressões que os populares (adorável vocábulo tão usado pelos nossos jornalistas) se apressam a repetir constante e tristemente, talvez por comodismo, porventura por necessidade de se sentirem também na crista da onda cavalgada por gente supostamente bem falante. Este seguimento, esta macaquice parola conduz ao alastramento de uma maré negra de frases feitas, chavões e lugares comuns de banalidade, falta de imaginação e, por vezes, asneira crassa.

A primeira tentação, por influência das telenovelas, foi a adopção de termos brasileiros como o insuportável “Tudo bem?”. O mal é que esta expressão não veio juntar-se às nossas. O mal é que ela veio substituir, deitar para o lixo, as múltiplas fórmulas de saudação bem portuguesas como “Passou bem?”, “Como está?”, “Que tal vai isso?”, “Ora viva!” ou “Vai ou não vai?”. Ganhámos uma expressão que não é nossa, a que não somos capazes de emprestar a graça, o tom doce dos brasileiros, e perdemos várias formas bem portuguesas, esvaziando, mutilando a nossa língua. Este é que é o grande problema, aquilo que perdemos por deixarmos de usar e que vai caindo no esquecimento.

Depois, a utilização insistente das palavras e expressões na moda dá lugar a uma linguagem monocórdica, estereotipada, cassete sensaborona. Políticos e jornalistas, a inefável sociedade civil (os outros todos serão militares?), todas essas insignes figuras, em vez de elevarem o nível, colocam a língua no baixo estrato do futebol. E é ouvi-los dizer “nesta altura do campeonato”, “a bola está no campo da oposição” e outros primores de originalidade e requinte literário. O País não tenta reagir, vencer os obstáculos, ultrapassar as dificuldades, recuperar, nada disso. O País, como o clube da bola ou o político em queda, apenas garante que vai dar a volta por cima. A expressão pretende ser moderna, voluntariosa e optimista, mas não passa de uma construção esquisita e reles que, para cúmulo, ocupa sempre (e aqui reside o mal) o lugar de fórmulas correctas e de outro nível linguístico. E o resultado, claro, só pode ser o empobrecimento do nosso idioma. Não admira, pois o futebol é uma mina de coisas bonitas. Os jogadores dizem sempre o mesmo, têm de trabalhar muito, de estar muito concentrados para atingirem os objectivos. Não são erros, são apenas cassetes estafadíssimas que revelam, no mínimo, falta de criatividade. E saturam…

Os jornalistas (?) desportivos não são melhores quando dizem que a equipa que está a perder vai ter de correr atrás do prejuízo, quando ela tem de fazer é precisamente o contrário, ou seja, anular a desvantagem, reduzir o tal prejuízo. Jogador ausente, por castigo, lesão ou opção técnica é, na boca desses inefáveis poetas, uma carta fora do baralho. O conjunto de jogadores é mais conhecido por plantel (o que será?) e sobretudo por “grupo de trabalho”. E é o grupo de trabalho para aqui, o grupo de trabalho para ali. Será que jogar futebol é sequer trabalho? E que dizer da rebuscada “sinalética” em vez de sinal? Também acontece um jogador perder a posse de bola (como se ela lhe pertencesse) quando, prosaicamente, perdeu a bola ou ficou sem ela. O futebol é, como se observa, a locomotiva privilegiada deste arejamento, desta onda de “modernices” catitas que ouvimos a cada esquina. Antigamente, o avançado aparecia isolado. Hoje surge na cara do guarda-redes. Na cara não têm vergonha os que andam a destruir, a manchar a língua portuguesa, sabendo-se da influência que exercem criaturas destas em cujas mãos imprudentes indivíduos põem um microfone. Dantes um defesa intervinha com rudeza, com dureza, com violência, forte e feio ou com excessiva virilidade. Hoje entra com tudo. É uma síntese importada do Brasil (está bem de ouvir) que pode ser sugestiva mas que tem o defeito de todas estas expressões na berra, cansa pela repetição papagueada e atira para o balde do esquecimento as diferentes fórmulas em bom português. Não chega a ser divertido, é apenas cansativo e desolador.

Todos os dias ouvimos dizer que o assunto vai estar em cima da mesa das negociações. Pudera, havia de estar em baixo da mesa?

Ninguém já fala sobre este assunto, este tema, esta questão. É sempre e só sobre esta matéria.

A par do calão mais ou menos reles e totalmente dispensável como bué ou curtir, temos expressões manhosas como “à maneira”, a par de muletas repetitivas como o horripilante “é assim”. De facto, já não há paciência para tão pindérica e supérflua expressão.

Os nossos jornalistas adoram, descrever festas que decorrem sempre com pompa e circunstância. Festividade com pompa, imagino como será. Agora cerimónia com circunstância, confesso que não consigo idealizar. Não haverá nas redacções alguém que explique às criaturas que se trata da pompa própria da circunstância e não a dita e a cuja?

É frequente ouvir-se que a questão se prende com isto ou aquilo. No máximo poderia prender-se a e não com alguma coisa. A não ser que se prenda com arames ou com corda. Que diabo, já não serve dizer-se que está ligada ou relacionada? Será que esta moda se prende com alguma crítica subliminar ao sistema judicial?

Não haverá uma alma caridosa que ensine que não se diz “foi um dos presos que fugiu” mas sim “um dos presos que fugiram”. Ou então “um preso que fugiu”. Este grosseiro erro é ouvido todos os dias, repito, todos os dias, na rádio e na televisão, na boca de gente com cursos superiores (a quê?)…

São os mesmos que traduzem a expressão latina pari passu por a par e passo em vez de passo a passo, de perto ou, literalmente, com passo igual. Para trás ficaram, felizmente, os incontáveis pois e portanto. Mas ainda se ouve demasiados pronto e (pior) prontos.

Três adjectivos ocupam todo o terreno da qualificação, ofuscam e deixam no desemprego todos os outros. São eles óptimo, espectacular e complicado, aplicam-se a tudo. Dantes dizia-se que o filme foi empolgante, que a água estava morna, o almoço delicioso, o tempo agradável, a festa divertida. Hoje só existem dois adjectivos para todos estes casos, óptimo, é tudo e só óptimo, na boca da gente mais fina. As camadas mais rasteiras usam, para tudo, o espectacular. Com sinal negativo, dizia-se que a criança era turbulenta, a estrada perigosa, a viagem atribulada, o jogo difícil. Hoje é tudo e sempre complicado. Desta forma, inexoravelmente, o nosso vocabulário vai minguando. Além de ser fastidioso ouvir constantemente as mesmas palavras…

Na moda está o “desde logo” que raramente é usado a preceito. Também na berra, em vez de “a questão é”, “o que se passa é” ou “trata-se de”, o que é fino dizer é “estamos a falar de”. Hão de reparar…

Com raízes fundas está o “dado adquirido” em vez de certeza, facto, realidade, etc. Não sei onde foi adquirido, se foi dado ou emprestado, mas que é piroso, lá isso é.

Tal como para se dizer que é possível ou que há condições surge sempre o chavão “estão reunidas as condições”. É incontornável, outra deliciosa descoberta.

E agora é tudo “em concreto”. Tal como não basta ser activo, tem de se ser pró-activo, neologismo algo suspeito nestes tempos conturbados dos escândalos da pedofilia.

Talvez por isso, dadas as delicadas e sensíveis questões legais, já cana ouvir o “alegadamente” que funciona como resguardo ou preservativo antes de cada afirmação, revelação ou indicação. Arranjem outra, já chateia tanto alegadamente

O mesmo se aplica ao sinistro “atempadamente”, como se não tivéssemos “a tempo e horas”, na altura própria, em tempo útil, oportunamente, etc.

Tempos houve em que existiam barbeiros, merceeiros, donos de cafés ou restaurantes, pedreiros, electricistas, mecânicos, pintores, construtores civis, etc.

Hoje só há empresários. A palavra enche a boca e o ego dos nossos comerciantes e industriais, seja qual for a sua dimensão. Até o engraxador da esquina se declara pomposamente empresário. Somos realmente um país do faz de conta…

Os políticos são os campeões da linguagem hiperbólica e modernaça, com pérolas como obstaculizar, empresarializar, contratualizar, deslocalizar, direccionar, para já não falar de “economicista”. Durante anos, décadas, séculos, conseguimos viver e compreender-nos, dizendo dificultar, gerir com rigor, contratar, transferir, dirigir e económico. Mas não, é preciso mais sainete, outro estilo. Vai daí, toca a inventar, a recriar derivações. De contrato sai contratar, não contratualizar que viria de contratual. Qualquer dia, aparece um senhor deputado a dizer negocializar em vez do corriqueiro negociar. E os populares vão logo atrás, é incontornável

Talvez por acharem que há falta de verbos, alguns eruditos resolveram, a partir de elenco e alavanca, dar à luz as graciosas formas que são elencar e alavancar. A tais espíritos superiores já não servia dizer enunciar, nomear, indicar ou citar. Não senhor, elencar é mais chique. Depois, impulsionar, incentivar, estimular, apoiar, nada disso serve. Agora gente fina diz alavancar que é palavra bonita, expressiva, soa bem.

Igualmente deliciosa é a preocupação em usar o substantivo em vez do mais que indicado verbo. Dantes, os espíritos simples diziam que “não pagar a multa no prazo traz complicações”. Hoje, dir-se-á que “o não pagamento da multa no prazo (ou será nos timings?) traz complicações. O advérbio “não” é repetida e despropositadamente usado, não junto ao verbo (como lhe compete) mas ligado ao substantivo. Ouve-se e lê-se com frequência “não presença” em vez de ausência, o não respeito em vez de desrespeito. Até já vi escrito ao lado de “o direito de caça”, o direito de não caça. E um reconhecido comentador político afirmava que o mais provável seria a não guerra.

Não se analisa um texto aquando ou na altura da revisão orçamental, mas em sede de revisão orçamental. Os nomes dos árbitros são conhecidos em sede de sorteio…

E já ninguém acompanha de perto nem segue um projecto. Agora só se monitoriza. Alegadamente, é outra elegância…

Hoje não se executa, arranca, põe em prática, leva por diante ou dá início a um empreendimento ou uma acção, só se implementa.

Delirante igualmente é o uso repetido (ou melhor, recorrente) da forma distorcer no sentido de afectar, adulterar, pôr em causa, quando distorcer significa precisamente o contrário, ou seja, endireitar, corrigir, restabelecer.

Nos bons velhos tempos, fazia-se perguntas. Hoje, coloca-se questões. Percebem a diferença? Eu não, e acho ridículo. E incorrecto, porque uma não equivale à outra, são coisas diferentes.

Nada agora é simples ou provável, mas sim líquido. E se não foi pacífico chegar a acordo, isso não significa que tenham andado à tareia. Quer apenas dizer que não foi fácil. Mas fácil não oferece o toque de classe que pacífico parece conferir a quem o utiliza. A verdade é que as figuras públicas influenciam e condicionam os teledependentes, os tais populares que julgam distinguir-se quando repetem tiradas pedantes. E como ninguém aponta a dedo os autores e os instigadores de tanta fatuidade, a degradação continua.

É uma tristeza, mas parece que é assim, é bué da fixe e à maneira

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*Publicado no n.º 25 de Sesimbra Eventos, de Junho/Julho de 2003.

1 comentário:

  1. A degradação não tem fim...
    Para ir buscar um só exemplo: em 2003 ainda um jornalista "colocava questões"...
    Hoje, com muitíssima frequência, "FAZ QUESTÕES": "-Ó Senhor Ministro, deixe-me fazer-lhe uma questão" (sic, na SIC, há dois dias...).

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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