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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 45




Senhoras minhas*

António Cagica Rapaz

e meus senhores. Foi assim que iniciei a alocução que proferi no Clube Sesimbrense por ocasião da celebração do seu 146.º aniversário. Foi a forma que escolhi para prestar homenagem ao nosso inesquecível professor Artur Maria da Silva Costa e, ao mesmo tempo, dar o tom para a conversa em família para que o Rui Mota me convidou.

Não é minha intenção repetir aqui, por aproximadas palavras, quanto me ocorreu dizer naquela tarde de sábado. É verdade que poucos dos leitores lá terão estado, mas cada coisa tem o seu tempo e a sua moldura. E, se retomo o assunto, é porque se tratou de uma experiência de comunicação que envolvia para mim uma espécie de desafio, um teste a certas ideias que tenho quanto à natureza deste processo curioso e aliciante que é o diálogo imperfeito através desta última página. Já o escrevi muitas vezes, o que tendes entre mãos é apenas um jornal, papel que vai amarelecendo, capacho adiado, artigo perecível, folha à mercê de qualquer Outono menos meigo. Mas é, ao mesmo tempo e paradoxalmente, algo de muito importante, quando nele pomos algo de nós, quando através dele passa a amizade, o desejo de partilhar alguma coisa, sonhos, recordações, ideias, o simples facto de pertencermos a esta terra, a este mar…

Nada disto habitava o meu espírito quando o Rui me telefonou. Sem hesitação, aceitei o convite, e só depois dei por mim a pensar no que iria dizer. No fundo, preocupava-me não saber quais seriam as expectativas da Direcção do Clube, o que esperavam ou desejavam de mim os que me convidaram e os que lá se deslocariam para me ouvir. Como costumo fazer, deixei aboborar, esperei que uma ideia viesse, um caminho se desenhasse. Felizmente, tinha carta branca, pois não me haviam imposto qualquer tema, como por vezes acontece. Na verdade, por mais interessante que possa parecer, um tema pré-determinado constitui um espartilho e um constrangimento. Por isso, confiei no acaso, deixei que o mar traçasse na areia um sinal, um rumo, ou deixasse na rede uma ideia de assunto.

A palavra palestra causava-me certo desconforto, evocava-me os inúmeros discursos a que não pude escapar. A ideia de falar de cátedra não me seduzia, por um lado, por não me achar à altura e, por outro, por preferir um tom mais coloquial.

O professor Silva Costa teria, imagino eu, uma perspectiva algo semelhante. Daí, porventura, aquela forma, remotamente maliciosa, que ele arranjou para retirar parte da solenidade que os discursos carregam às costas. E também para deixar entrever, desde as primeiras palavras, Que não iria ser fastidioso. Assim, resolvi adoptar uma perspectiva algo egoísta e falar de pessoas e de coisas de que gosto, admitindo que tal viesse a ser do agrado dos presentes. No fundo é o que aqui sempre tenho feito, impondo-vos a minha vontade, ao escrever o que me apetece. Mas não é menos verdade que procuro não me afastar do que julgo, adivinho, pressinto (e às vezes sei) ser o vosso gosto. Porque aqui intervém o que penso ser essencial nesta relação que se estabelece entre quem escreve e quem lê, ou seja, a criação de um espaço comum, espécie de pátio de recreio onde os jogos podem ser de palavras, onde cada crónica é apenas uma mensagem lançada ao vento, praia fora, marginal adiante, sinal combinado, pretexto para o que realmente é importante, o encontro entre pessoas. Cada crónica é uma palavra de um diálogo que só se torna efectivo quando nos encontramos à esquina do Central e falamos disto, daquilo, às vezes (não é indispensável) do que escrevi. Talvez por ser Gémeos tenho dualidades estranhas. E tanto gosto de conversar longa e acaloradamente como sou capaz de ausências e silêncios demorados. A escrita ajuda-me a não me deixar arrastar para a ascese…

E assim foi que me apresentei no Clube, disposto a fazer aquilo de que gosto, conversar ao sabor da inspiração do momento. Naturalmente, levei uma cábula, archote discreto para me iluminar o caminho, salvar-me do perigo de ir à via nas marés desencontradas da fantasia que às vezes me arrasta.

O nosso novo e jovem pároco apenas ficou alguns minutos, prometido que estava a missão inadiável. Mas ainda tivemos tempo para trocar duas frases de circunstância, tendo surgido pelo meio o nome do padre João. Com suave franqueza, confessou que muito tem ouvido falar no padre João, embora não tenha dado mostras de agastamento nem preocupação.

Pelo contrário, deu a ideia de querer conhecer melhor a figura do padre João, talvez para compreender as razões da saudade que ele em nós deixou.

Foi porventura este intróito que me levou a recordar outros que li, durante anos, a meias com o Pedro Gonçalves, na missa das crianças, até o futebol, me levar por outros caminhos…

A meu lado, na mesa de honra, como é usual dizer, estava o Dr. Manuel Nabais, meu professor de Português no antigo 5.º ano e que herdou a tremenda responsabilidade de substituir o Dr. António da Costa Marques, homem de grande envergadura, personalidade notável e mestre em várias disciplinas. Peso semelhante terá sentido sobre os ombros o padre Abílio quando veio render o padre João. Não é fácil assumir certas sucessões, é verdade. Não deixa de ser curioso observar que falar diante de um antigo professor foi uma espécie de prova oral, consequência natural das provas escritas que, mês após mês, aqui venho fazendo. Felizmente não dispensei desta oral cuja dificuldade paradoxal residiu no facto de não me fazerem perguntas.
Antigamente, nestas festas de aniversário, mandavam vir o Rui de Mascarenhas ou a Maria Marise. Agora atiraram-me para a boca de cena, naquela sala onde arrastei os pés, dotado que nunca fui da suavidade deslizante do Lucindo ou do Alfredo Filipe, um modelo Astérix, outro tipo Obélix, mas ambos admiráveis dançarinos. Cantar também não é o meu forte, e muito jeito me teria dado levar comigo o Luciano Faria, por exemplo, que tinha das mais bonitas vozes que passaram pela Vila Amália. Ao falar de “coisas que teria pudor de contar seja a quem for”, lembrei-me do João Villaret a dizer José Régio. E lembrei-me do David Saloio, naturalmente, o nosso empolgante declamador de tardes inesquecíveis dos primeiros de Dezembro da nossa Mocidade. Lembrei-me de tudo isso e muito mais, mas a verdade é que estive sozinho perante a curiosidade silenciosa dos prezados consócios que, por me conhecerem, me deviam interrogar sobre a cor do coelho que eu iria tirar da minha cartola de ilusionista do discurso directo.

No fundo, não lhes impingi uma crónica falada nem agora vos faço um relato do que lá disse. Se retomo o assunto é porque, pelo menos para mim, foi uma experiência muito agradável, interessante e honrosa. O mais significativo, a meu ver, terá mesmo sido o que aconteceu depois da alocução.

Enquanto esta durou tive a sensação de estarmos a partilhar alguma coisa, de lhes estar a dizer o que teriam escolhido se tivessem tido possibilidade de escolha. E isto porque, apesar de ser só eu a falar, tive a impressão de ser um verdadeiro diálogo, com réplicas dos presentes em forma de olhares, sorrisos, gestos de cumplicidade. Não se tratou de mérito do orador, apenas terei, porventura, tido a intuição de acertar o passo, de dar a mão ao entrar na roda, de remar em cadência, de estarmos em sintonia. Para, desta maneira, todos juntos, fazermos daquela cerimónia (um bocadinho solene, apesar de tudo) uma pequena festa de família, com certo sabor a consoada. Fiquei feliz por ter contribuído para alguma expressão espontânea de afectividade que julgo ter sido sensível durante o convívio que se seguiu. Não houve apenas a busca da comida, antes vimos conversas animadas, grupos que se formaram e entrecruzaram, certo espírito de fraternidade que me pareceu sincero. Quase havia no ar o perfume do cafezinho do Damião, foi bonito e simples. Afinal, é esta a razão de ser de todos os Clubes.

No fim, fica a dúvida sobre a duração da alocução, se teria valido a pena alongá-la, se não seria maçador ir mais longe. Alguns espíritos mais brejeiros gostariam de ver evocada a peripécia do duelo Ernesto-Zé Brandão, a peixaria face à oficina, pistoleiros da noite saídos do Ribamar dispostos a tudo. Ou o dueto burlesco do passo doble protagonizado pelo Zé António da parteira com o mascarado Zé Albano. Outros, mais propensos ao bucolismo, talvez tivessem apreciado um poema, meia dúzia de apontamentos poéticos, a cheirar a maresia e com música de Carlos Paredes em fundo, não sei.

Talvez um dia, com fogueira à porta, pelos santos populares, fica o alvitre…

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* Publicado originalmente em O Sesimbrense de Fevereiro de 1999.

3 comentários:

  1. Acredito que tenha sido uma palestra interessantíssima. O contrário é que não seria natural...

    Extraordinária fotografia do Carlos Paredes!

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Honra-me ter dado uma pequena ajuda para concretizar a última sugestão do texto!
    Como me senti pequenino entre o Mestre e o Escriba...

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  3. Noite memorável, com efeito, meu caro Impaciente! E, tanto quanto me recordo, estivemos todos, por igual, à altura das circunstâncias...

    Boa Noite, Ó Mestre!

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