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segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 40


À porta da praça

António Cagica Rapaz

Antigamente as tertúlias eram numerosas, o barbeiro, o café, a taberna, a loja de companha, a sociedade de recreio, as escadinhas, o muro da marginal, a esquina do Central, os bancos do jardim, a antecâmara das sentinas, a praça, o adro da igreja, o consultório do doutor Caramelo, o carro da carreira, o barco de Cacilhas. Em toda a parte se falava, com calor, com volúpia, sempre com aquele sotaque tão nosso, tão pexito, inspirado no murmúrio do vento leste, no ronco surdo do mar, na melodiosa cantilena das vagas suaves que vêm morrer na areia, nos gritos das gaivotas, nos berros do chamador...

O barbeiro era, por tradição, talvez por vocação inconsciente, um homem de comunicação, orador, confidente, professor, relações públicas, diplomata, alcoviteiro discreto, tudo isto em doses variáveis consoante a personalidade do freguês, o troco que dava e a adesão da assistência. A barbearia era, muitas vezes, palco de terapia de grupo, análise e introspecção no fio da navalha, almas aparadas, emoções desbastadas, angústias de risco ao lado, álcool para as feridas provocadas por derrotas benfiquistas, sublimado para desavenças conjugais, a vida à espera de vez.

Muitas vezes o meu pai me falou, com profunda admiração, no mestre Alfredo Batista, elogiando o talento de grande actor, sublinhando a inteireza do carácter, a coragem das opiniões políticas e, sobretudo, os invulgares dotes de orador.

A praça, abençoada instituição, sempre foi o local ideal para encontros, o que muitos designam por coscuvilhice, calhandrice, má língua e conversas de alcofa que não raro o são de alcova. Mas no fundo, bendita calhandrice esta que é bálsamo para a solidão, factor de aproximação entre as pessoas, diálogo saboroso, comunicação, presença, expressão de vida, de cumplicidade, de fraternidade, gente que se olha, que se fala, que se toca com as mãos, que partilha alguma coisa, o sol, a brisa, a esquina do tempo que uns oferecem aos outros, gente que está viva.

A praça cheira a flores, a fruta, a peixe, juntam-se as pessoas, é a nossa terra, a nossa gente. Talvez por isso, o Julzé parecesse embriagado por este sol e pelo calor que sentia à sua volta. Em cada Verão, volta da fria Alemanha para matar a sede de água salgada, a fome de sardinhas assadas, as saudades da rua da Fé, do cheiro do mar, dos amigos, da verdadeira vida, fruto das raízes que estão em nós, que nos fazem sentir que este é o nosso lugar, que pertencemos aqui. Lá longe, há-de sentir, de vez em quando, o apelo do mar, um aperto no coração e uma vontade louca de largar tudo e vir a correr para a borda d’água, andar à roleta, deixar que as vagas o envolvam, o cubram de espuma, o acariciem como a mãe faz em cada Verão em que ele chega sedento de mar e de ternura...

1998

2 comentários:

  1. Este dom, esta forma de descrever gentes, almas, sons e cheiros, é fascinante.
    Porque, fechamos os olhos e uma praça é assim mesmo. Seja em Sesimbra, em Portimão, no Porto ou em Lisboa.
    Apenas o sotaque muda.
    E o "pexito", aqui, é um cantar de Amor...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Hoje em dia, com a moda dos centros comerciais e dos hipermercados ou grandes superfícies (até parece que estão a falar de mim), foi-se perdendo o salutar hábito de ir à praça.

    Mas era eu catraio e um dos meus maiores prazeres, sabia-o eu na altura tal como o sei hoje (recordando-o com uma enorme saudade), era acompanhar a minha mãe à praça, normalmente ao sábado pela manhã, para o chamado avio semanal.

    Aquela profusão de cores, a amálgama de pessoas, os gritos que passavam sem os sentirmos, o pregão ao freguês que passava a tentá-lo à compra, os cheiros múltiplos que passavam da hortaliça e da fruta para o peixe, e deste para o pão acabado de cozer ou para os bolos embrulhados em papel cinzento, não podiam deixar indiferente um pobre menino que assim se encantou pelo lugar.

    Era um momento de aventura, aparentemente tão banal para todos e tão especial para mim, que por instantes me sentia transportado para outro mundo, onde tudo era novidade, mesmo aquilo que já sabíamos que lá iria estar à nossa espera. Naquele labirinto de bancadas, cheio de obstáculos em movimento, onde cada minuto tinha o condão de nos penetrar a alma e a memória.

    Que voltou a nós, por via desta magnífica interpretação textual, e nos atingiu com uma violência quase militarizada, fazendo-nos sentar, a praça!

    Pelo que faço, reverentemente, continência ao Autor!

    Boa noite, ó mestre!

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