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sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

CONFRARIA MÍNIMA, 38

as crónicas da Eventos...



A pena do poeta*

António Cagica Rapaz

Trinta é número redondo e desafio para balanços e retrospectivas que cada um de nós é livre de fazer à luz das suas convicções, das suas ilusões e de fragilidade de uma memória caprichosa e pouco isenta. Por isso, dificilmente haverá um dia uma visão abrangente e consensual do que foi, ou terá sido, o chamado 25 de Abril.

No labirinto das velharias do largo da Marinha, adquiri recentemente um livro do insuspeito e consagrado poeta José Gomes Ferreira que me forneceu o mote para este apontamento. A certa altura, naquilo que define como uma autocrítica de um revolucionário de consciência dorida, diz o poeta: Fizemos a Revolução sem a estudar. De cor. Resultado: falhámos e foi pena. A História vai ficar diminuída. Embora os versos possam permitir duas interpretações de sentidos opostos, há uma inequívoca ideia de frustração. E sendo conhecida, como é, a militância do poeta, podemos pensar que ele lamenta que a revolução não tenha ido mais longe, ou seja, que a foice não tenha chegado tão fundo quanto ele ambicionava e que o martelo não tenha pregado a partida com que sonhava. Todavia, José Gomes Ferreira acabou por escrever direito por linhas tortas. De facto, os que cavalgaram o golpe militar e tentaram transformá-lo numa revolução, falharam. E ainda bem que falharam. Em verdade não sei se a História terá ficado diminuída, o que sei é que a versão idílica que alguns vates andam há trinta anos a entoar é que não terá sido exactamente uma odisseia de cravos nem uma epopeia de povo unido.

Primeiro, conviria, porventura, apurar quem levou a cabo o golpe militar. E porquê. O povo, o tal povo heróico, estava a dormir naquela noite, como vinha fazendo há muitos anos. Em vez de dizermos onde estávamos no 25 de Abril, seria melhor confessarmos onde e como andávamos no 24 de Abril…

Ninguém duvida, foram os militares que fizeram o golpe. Mas porquê? Não é segredo nem novidade que os militares conviveram com o regime de Salazar e Caetano, foram mesmo o seu sustentáculo ao longo de décadas. Por isso, haverá que distinguir duas consequências maiores do golpe militar. Uma foi o derrube do regime, é verdade, mas tal só terá acontecido como resultado da outra que foi o fim da guerra do Ultramar. Este sim, terá sido o objectivo essencial, por que toda a gente, o país inteiro, por muitas e óbvias razões, queria ver terminada uma guerra devastadora e injustificada que começou na Primavera de 1961. Até essa data, os militares tinham-se mantido ao lado do povo, talvez, mas igualmente, ao lado do regime. Porém, a partir do início da guerra, os candidatos à Academia Militar começaram a rarear e, a certa altura, os capitães do Quadro não eram em número suficiente para as comissões de serviço numa África para onde eram mandados rapidamente e em força. Resultado (como diria o poeta), o regime foi obrigado a recorrer aos milicianos, processo que teve início em 1970, salvo erro. Ora, esta coexistência entre capitães milicianos e do Quadro depressa deu lugar a conflitos e reivindicações resultantes do facto de os capitães de carreira, os profissionais da guerra, se encontrarem, em termos de vencimentos e das prerrogativas, em pé de igualdade com os incipientes capitães milicianos, maçaricos, aprendizes nas artes do golpe de mão e da emboscada. Terá, pensam alguns, começado aí o descontentamento dos futuros capitães de Abril. Ao mesmo tempo, é bem sabido que uma comissão de serviço no Ultramar era a sorte grande para muitos oficiais superiores (entenda-se, de major para cima) que ou ficavam nas cidades (na guerra do ar condicionado) ou não saíam dos aquartelamentos, correndo poucos ou nulos riscos.

Ao passo que aos capitães outro galo cantava, eles iam mesmo à luta, eram carne para canhão. Por isso, esta disparidade acabou por pesar muito na tomada de consciência de que algo teria de mudar. Não foi por acaso que a guerra se arrastou durante tantos anos. De facto, isso só foi possível porque assim o exigia o regime, mas igualmente porque convinha aos tais oficiais superiores. Muitos deles, mal voltavam de uma comissão, só pensavam na seguinte, ansiedade que pude testemunhar quando cumpri serviço militar na Defesa Nacional. Por eles, a guerra teria durado muito mais tempo, e só não aconteceu assim porque os capitães resolveram exprimir o que hoje seria designado por direito à indignação. A face visível desse descontentamento terá então tomado a forma de reivindicações salariais que, segundo muitos observadores, terão sido a causa principal do golpe. E isto porque Marcello Caetano se recusou obstinadamente a satisfazer tais pretensões. Parece não haver a menor dúvida de que Marcello estava a par de tudo. Neste capítulo, posso revelar dois pormenores interessantes. Na tarde do dia 24 de Abril estive nos estúdios da RTP, no Lumiar, onde Marcello era esperado para gravar mais uma “Conversa em Família”. Para surpresa geral, o homem não apareceu. É verdade, sou testemunha. Anos mais tarde, um coronel do nosso Exército garantiu-me (sem revelar nomes) que, nesse mesmo dia 24, três oficiais superiores foram recebidos por Marcello a quem asseguraram que se concedesse os aumentos salariais exigidos pelos capitães, o golpe ficaria sem efeito. Marcello, pela última e decisiva vez, não cedeu. Segundo a mesma fonte, Marcello acreditava que o golpe lhe seria favorável. Enganou-se. Ou foi enganado…

Depois, foi o que se sabe, o povo saiu à rua e fez a festa. A quase totalidade dos soldados não sonhava sequer com o golpe, mas nem por isso deixaram de armar em heróis, deixando crescer barba e bigode, plantando cravos na boca das G3 e passeando nos carros de assalto, quais afadistados Guevaras saídos na Farinha Amparo.

É verdade que foi uma indescritível alegria, um alívio e uma bebedeira de liberdade. Aquele 1.º de Maio foi luminoso e feérico, ficará certamente na nossa memória colectiva. Mas logo a populaça amorfa e acobardada começou a pôr-se em bicos de pés, como uma vendedeira que, de mão na anca, no dia 26, ao microfone do repórter da RTP, e num trejeito de provocação, ameaçava: “A gente não pede nada. A gente agora EXIGE”. Era o povo no seu melhor, o mesmo povo que ocupou casas, julgou amigos de infância em abjectos tribunais orquestrados por comissões de revolucionários moradores. O 25 de Abril foi para todos nós um dia glorioso de sol e de esperança num futuro melhor. Foi muito bom ter acontecido, fossem quais fossem as causas próximas ou remotas. Mas, por favor, acabem com as histórias da carochinha e com a farsa do lobo do 24 que milagrosamente se transformou em cordeiro ao acordar na manhã de 25 de Abril. Muitos desses lobos, os ferrabrasses das ocupações de casas, das prisões arbitrárias do Copcon, dos crimes das FP25, muita dessa boa rapaziada ainda anda por aí. E há feridas que nem trinta nem trezentos anos chegarão para sarar. Não basta trazer Abril na boca e um cravo na lapela para se ser um democrata, tal como não chega envergar capa vermelha atrás da procissão para garantir um lugar no reino dos céus. É preciso que haja memória, coerência e dignidade. Porque Abril é para celebrar com moderação, sem sectarismos requentados nem visões maniqueístas.

Diz o poeta que fizeram a Revolução sem estudar. Pois foi. Melhor fora que tivesse sido um movimento pensado, reflectido, preparado, planeado, como seria de esperar de verdadeiros militares. Poderia ter sido o fruto de uma amadurecida e genuína tomada de consciência cívica e política. Se assim tivesse sido, muita coisa teria corrido melhor, a começar por uma descolonização que todos deviam saber que seria o difícil, melindroso e inevitável capítulo seguinte.

Mas, pelos vistos, a revolução não foi estudada. E falhou. Para o poeta foi pena, para o povo português nem tanto. Porque o povo português, na sua provável ignorância mas com um instinto implacável, festejou ruidosamente o fim da guerra e a queda do regime, mas não perdeu a lucidez e, na Fonte Luminosa, soube dizer não à revolução para a qual muitos poetas e falsos profetas nos queriam arrastar.

Posto isto, ninguém é dono da verdade e cada um vê o 25 de Abril como entende. Porque esta liberdade, até de pensar de forma errada e de exprimir opiniões controversas, é a grande conquista de Abril…

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*Publicado no n.º 30 de Sesimbra Eventos, de Abril/Maio de 2004.

2 comentários:

  1. Que bem me lembro dos "afadistados guevaras"...
    Como se fosse ontem.

    Excelente crónica que dá ainda mais que pensar ao ser recordada nesta data...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. "O povo, o tal povo heróico, estava a dormir naquela noite, como vinha fazendo há muitos anos."

    E ainda não acordou do soninho de beleza, pois acordado talvez vislumbrasse muita fealdade no Portugal do século XXI!

    Fujam Muito Intensamente, que ele está à porta!

    Boa noite, ó Mestre!

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