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sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

CONFRARIA MÍNIMA, 36

as crónicas da Eventos...



A toalha do Justino*

António Cagica Rapaz

É natural que a juventude dos nossos dias se entusiasme com um futebol transformado num espectáculo televisivo que, além disso, ainda enche páginas de três jornais diários e ocupa horas na rádio.

É compreensível que gostem do que lhes é oferecido pela tecnologia do seu tempo e ninguém lhes peça sequer para tentar imaginar o que terá sido a aventura dos amantes de futebol sem cobertura televisiva, com uma rádio incipiente e meia dúzia de jornais semanais. Como poderão eles entender a febre de quem jogava em campos pelados e ásperos, com bolas duras, pesadas, com atilhos e botas de tortura?

Aliás ninguém lhes pode pedir tal exercício de regressão no tempo. Cada um vive na sua época e boa filosofia será sermos capazes de gostar do que temos. Parece simples, mas não é assim tanto…

Hoje, o futebol desperta e alimenta paixões, mas de uma natureza diferente. Hoje, só a vitória conta, o espectador não procura qualidade, exige que a sua equipa ganhe, de qualquer maneira, até legalmente. Os dirigentes tudo fazem para conquistar triunfos porque há milhões em jogo, porque o futebol (além de constituir forte factor de alienação) gera protagonismo, dinheiro, e poder, mesmo contrapoder político. Este não é o meu futebol, o futebol que quero recordar, o futebol da paixão vibrante, forma de expressão de orgulho e até de honra que começava em cada rua para atingir o ponto mais alto na defesa da camisola cerise do nosso Desportivo.

Antes disso, foi a rivalidade acesa, a confrontação aguerrida, por vezes violenta, entre os clubes que acabaram na fusão. Não sei se o Desportivo terá sido a soma real das vontades, do empenhamento, da garra e dos sonhos de quantos o fundaram. Aqui e ali terá, porventura, ficado algum ressentimento, certa frustração, porque se é verdade que o Desportivo nasceu, não é menos exacto que os outros morreram…

Cada um de nós olhará o universo do futebol à luz da sua experiência pessoal e ninguém poderá abordar este tema de forma exaustiva, focando cada um dos mil aspectos relevantes que ele encerra. Pela minha parte, a primeira visão que tive foi a epopeia apaixonante do Pátria, através das narrativas do meu pai. E o que me ficou foi a imagem da paixão, da solidariedade, da perseverança, do amor próprio. O Pátria não foi o maior dos clubes de Sesimbra, mas foi uma causa a que um punhado de homens se entregou de alma e coração.

Depois veio o Desportivo que acompanhei com intensidade, assistindo a treinos e jogos, de reservas e primeira categoria. Via passar à minha porta os jogadores, olhava-os com admiração, tentava compreender a metamorfose das botas d’água em botas de traves, acariciava alguma bola que, no treino, me vinha parar às mãos, vendo nela um objecto mágico.

Ao mesmo tempo, ia começando a gostar do Belenenses, e o meu ídolo era o Matateu. Mas no meu espírito cedo arranjei espaço para juntar os famosos jogadores do Belenenses, ídolos distantes e quase irreais, e os meus heróis caseiros, o Manel Santana, o Izidro, o Rogério, o Zacarias…

Quando comecei a jogar nos juniores, tive como treinadores dois antigos extremos, um esquerdo, Carlos Santos, e outro direito, José Filipe. Foi um tempo heróico, de improvisação, de euforia, de arrebatamento, felizes e deslumbrados com a honra de envergar a camisola do Desportivo, jogar com uma bola a sério, num campo com marcações a cal, redes e tudo, calçar botas de traves, viver a quase inacreditável aventura.

Quis o destino que tivesse tido a oportunidade de chegar à Divisão maior, de vestir a camisola da Académica, de defrontar alguns dos ídolos da minha meninice. Jogar na Luz contra o Eusébio terá sido a glória suprema, defrontar o grande Matateu foi a mais tocante das experiências.

Cada coisa tem, na nossa memória, o seu lugar e o seu valor, há espaço para todas, por isso não é necessário estabelecer hierarquias. Porém, com o decorrer dos anos, há imagens cujos contornos se vão esbatendo mais do que outras e é verdade que fica um perfume de ternura pelo período da infância e da adolescência. Não só por sermos jovens, mas porque esse foi o tempo único não da nossa inocência mas do sonho, do arrebatamento, da explosão do nosso entusiasmo, da descoberta e do encantamento.

Enquanto coleccionávamos recortes de jornais no livro da primeira classe, o Fidalgo e eu olhávamos com admiração os jogadores do Desportivo, um dos quais, o Izidro, era tio dele. Anos depois, fomos companheiros nos juniores. Jogávamos de manhã, e à tarde estávamos a ver de perto os grandes jogadores que arrebatavam a multidão que enchia o minúsculo campo da Vila Amália.

Crescemos a vibrar com os duelos à chuva, com o mar ao longe a rugir, sob um céu de chumbo como o pé do Baeta, e com a eira do Valada suspensa da luta desigual e arrebatadora entre o Justino e os nossos heróis. Na baliza do Ginásio de Cacilhas, o Justino era um gigante, homem de uma cana, defendia tudo, limpava as mãos à toalha pendurada nas malhas, desafiava, irritava a assistência, negava o golo mil vezes, resistia sozinho, só tombava ao cair do pano. Era épico, dramático, inesquecível.

Provavelmente, mais do que uma vez, marcado o golo da vitória, os exaustos assaltantes do nosso Desportivo terão atirado bolas para o ribeiro, para ganhar tempo. Conservo nítida e viva a imagem de um Justino quase imbatível, que jogava de raiva, que tinha uma sorte que parecia bruxedo, que fazia defesas impossíveis e que encontrava na lama, nas traves, no vento, aliados cínicos e poderosos.

Anos mais tarde, fiz o meu segundo jogo pela Académica, na Póvoa do Varzim. Na baliza dos poveiros, o mesmo Justino e na minha memória, naquela tarde como hoje ainda, lá estava a figura esguia, felina, elástica. E talvez estivesse também, pendurada nas malhas, uma toalha que simbolizava o desafio que ele lançava, irónico e confiante, ao Desportivo, a Sesimbra inteira.

Era outro tempo, não sei se melhor, mas certamente de paixão mais autêntica, no universo estreito das nossas ruas, de emoções partilhadas, de sonhos contidos, de certa forma de pureza. Nem tudo seria perfeito, mas os gestos feios ficaram pelo caminho, sorrateiramente apagámo-los do quadro preto da escola, enterrámo-los na areia da praia do tio Abel, limpámo-los à toalha do Justino…

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* Publicado no n.º 27 de Sesimbra Eventos, de Outubro/Novembro de 2003.

2 comentários:

  1. mais uma crónica saborosa...

    que fala do Justino, do Ginásio da agora minha terra, do Matateu, que chegou antes de tempo, não foi apreciado como Eusébio.

    felizmente encontrámo-nos numa tarde grande, em Cacilhas, onde falámos de muitas coisas e também destes dois campeões...

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  2. Apenas quem viveu, como o Autor, estas experiências únicas as poderia relatar desta forma tão intensa.

    Quase que dá vontade de ir conhecer o tal Justino das mãos de ferro que adiava o inevitável golo da vitória até perto do final da partida, acabando por "morrer na praia", que só podia ser a de Sesimbra.

    Uma vez mais, Sesimbra aos olhos de alguém que muito a estimou e soube descrever em vários aspectos (até no desportivo)!

    E o final da crónica é absolutamente SOBERBO!

    Boa noite, ó mestre!

    P. S. - Recordo, com gratidão, as várias vezes que falámos (eu praticamente só escutava, com prazer) sobre a sua vida futebolística e de alguns dos episódios mais marcantes. Que saudades...

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