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sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

CONFRARIA MÍNIMA, 37

as crónicas da Eventos...



Super-homens*

António Cagica Rapaz

Na penumbra do velho salão do João Mota, presos à intriga do filme policial ou arrebatados pelas proezas do Robin dos Bosques, mal dávamos pela presença do bombeiro a nosso lado, deslocando-se silenciosamente, colado à parede, como os detectives privados na peugada dos criminosos.

Do outro lado, um polícia igualmente discreto completava a dupla de segurança que nos permitia ver a fita descansados. As suas silhuetas, diluídas no escuro, acabavam por nos chamar à realidade, agora e mais logo, arrancando-nos à magia do cinema, interrompendo o sonho, por vezes, mas tranquilizando-nos também a meio de algum filme de terror.

Era um pouco o que sucede quando, madrugada alta, temos uma vaga consciência de estar a sonhar e hesitamos entre prolongar a viagem virtual e despertar. Por vezes, deixamo-nos levar, flutuamos, andamos à roleta na borda d’água suave, macia, envoltos na espuma de uma semi-fantasia controlada, com um pé no sonho e outro na realidade. Em qualquer momento podemos pôr um termo à evasão, não corremos riscos, é uma preguiça deliciosa.

E, tal como no cinema eles exerciam a vigilância, garantiam a tranquilidade e representavam o nexo com o mundo real, assim ao longo das nossas vidas nos habituámos a que os bombeiros sejam os nossos anjos da guarda. Talvez nem sempre lhes demos o devido valor, quase acabamos por achar que é normal tê-los assim, perto de nós, sempre atentos, disponíveis e dedicados, como se tal nos fosse devido. Chegávamos a invejá-los porque viam os filmes de graça, e talvez tivesse nascido no salão, da fantasia e da fascinação do cinema, a imagem mítica que, inconscientemente, fomos construindo à volta da figura do bombeiro. Em muitos filmes de aventuras e acção empolgante (como anunciava invariavelmente o Filipe) o herói era um cidadão comum que, de repente, se transformava em Super-Homem, Capitão Marvel ou Zorro, para nosso deslumbramento e admirativo entusiasmo.

Da mesma maneira, aquele bombeiro, de capacete, cinto largo com fivela forte e machado de Viking (sobretudo um calmeirão como o Westerman) no lusco-fusco do salão, acabava por se aproximar do universo de quimera da tela e ganhar aos nossos olhos de miúdos uma dimensão impressionante.

Depois, no dia seguinte, era o regresso à banalidade do quotidiano, desfazia-se o encanto quando, na rua, víamos o Zé Tucha a vender castanhas, o Albano de fato de ganga, a fazer aiolas, o Aldeia na oficina, de fato macaco, ou o Emídio no talho, de avental branco. Os heróis forjados pela nossa ingénua fantasia na penumbra do cinema voltavam à trivialidade das suas ocupações rotineiras, embora atrás da porta estivessem sempre a postos a farda e o equipamento, tudo pronto para a acção comandada pelo lancinante silvo da sirene que punha a vila em alvoroço.

Mal esta soava, toda a gente vinha para a rua, num reflexo ditado pela curiosidade e pela angústia. O ritmo e a cadência do toque indicavam se o fogo era na vila ou no campo, e logo os homens corriam de farda na mão, capacete enfiado no braço, em direcção ao quartel dos Bombeiros, situado lá no alto, longe para quem tem de subir e pressa de acudir.

Os tranquilos e modestos cidadãos tornavam a ser os destemidos defensores das nossas vidas e dos nossos bens, como se uma simples farda azul e um capacete lhes transmitissem energia, audácia, destreza, coragem e abnegação por artes mágicas.

Podemos interrogar-nos sobre as motivações profundas que levam estes homens a colocarem-se ao serviço dos seus semelhantes de forma generosa e por verdadeiro altruísmo. Talvez retirem alguma satisfação dos olhares de reconhecimento e admiração que lhes são dirigidos, o que é normal e mais do que compreensível. É natural que se sintam felizes por contribuírem para o bem-estar dos seus conterrâneos, e é muito provável que se sintam transformados quando a sirene chama por eles. Aquela farda aparentemente banal dá-lhes certamente um ânimo e um ideal reforçados porque os investe de uma responsabilidade nova, os torna, muitas vezes, braços do destino, agentes de vida, combatentes da morte, da destruição e da desgraça.

É uma missão transcendente, um desafio repetido mas sempre novo, um mundo de expectativa, temor e ansiedade que se abre diante deles a cada toque de sirene. E o contacto com a farda, o afivelar do capacete, um gesto simples pode ser o suficiente para transformar o pacato carpinteiro machado num lutador audaz e infatigável.

Mas, contrariamente aos heróis do cinema, os nossos bombeiros não actuam isoladamente, não são heróis solitários. Pelo contrário, muita da sua força e da sua intrepidez deve-se ao espírito de corpo, à união, à fraternidade e à solidariedade que constituem o cimento que conserva e reforça o carácter, a grandeza e o ideal desta corporação humanitária.

Há dias, na Cotovia, um menino dizia-me, com recatado orgulho, que toca caixa na fanfarra dos Bombeiros. E a irmã, pouco mais velha, também. Quando vemos grande parte da nossa juventude agarrada à televisão, presa a computadores e, às vezes, à droga, é reconfortante ficar a saber que ainda há jovens capazes de abraçar causas e valores como os dos Bombeiros.

Nunca serão super-homens como os heróis de ficção da nossa meninice, mas é bom que sejam generosos, sinal de que nem tudo está reduzido a cinzas, que ainda há quem conserve o fogo sagrado, o único que os nossos bombeiros se recusam a combater…

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*Publicado no n.º 26 de Sesimbra Eventos, de Agosto/Setembro de 2003.

1 comentário:

  1. Palavras de reconhecimento por aqueles que, anonimamente, trabalham em prol dos outros.

    São, de facto, super-homens ou super-mulheres cujos poderes se mostram escondidos no dia-a-dia normal mas acabam por se revelar sempre que a sirene dá o alarme!

    Na verdade, com dizia um amigo meu há tempos, a vida de um bombeiro, às vezes, É FOGO!

    Em mais um inesquecível texto, à Cagica!

    Boa noite, ó mestre!

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