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quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 42



Alfredo*

António Cagica Rapaz

Há muitos na terra desde um que foi polícia passando pelo outro que se ocupa dos apartamentos a dois metros de profundidade, até ao Alfredo equivocamente conhecido por Pinto e Pinto. Podia ser o Alfredo Alfredo, mas é o Pinto e Pinto.

Ao princípio era a mercearia do tio Alfredo (pai do dito) que nos difíceis tempos em que não havia porto de abrigo nem radar e os vendavais eram longos, abastecia, a crédito, muitos dos prósperos clientes de hoje.

Do copo de vinho e do bagacinho passou-se à bica e ao brandy e este Alfredo é um símbolo da permanência simples e cordial de antigamente a par da modernidade multifacetada. A sua casa cheira a mar, não o mar dos Ursos mas um mar sem nome que está na alma da gente. Um mar que alguns clientes trazem em si e outros levam ao partir. Outros, ainda, ao partir, levam a barriga cheia de cerveja e marisco pois é para isso que o Alfredo tem a porta aberta.

O Pinto e Pinto entrou na lenda da «dolce vita» de Sesimbra. É o Verão que enche a casa de clientes, trabalho, ruído e dinheiro. O Verão e o sol fazem a vida comercial da terra e as delícias dos turistas, principalmente estrangeiros. O Alfredo teve um princípio difícil, tem trabalhado muito e começa a respirar mais tranquilamente agora. A casa tem sempre clientes porque, para o Alfredo, o Bexiga ou o Domingos são tão bons clientes como o rico inglês que vem comer lagosta durante uma semana. Quando o Baeta engata nas suas gargalhadas intermináveis não pergunta primeiro quem são os fregueses. O Deodato prepara os mexilhões com aquele molho especial, sempre com o mesmo cuidado. Se o Alfredo é o homem-chave, o patrão da casa, a verdade é que o Deodato faz mais falta do que a cerveja. À falta desta bebe-se vinho, mas sem o Deodato nada feito. Não presta, o Deodato?!…

O problema, é a «ursa no estame» (também conhecida por úlcera no estômago) que o obriga à tortura de preparar petiscos deliciosos para os outros enquanto ele bebe leitinho que faz muito bem à ursa…

Quando a noite começa a morrer nos outros refúgios de boémia, o Pinto e Pinto é a tenda dos milagres, o oásis apetecido, a hospedaria do viajante fatigado. É o último copo antes da deita, é o prego para recuperar energias perdidas nos tentáculos da noite. A Guarda Republicana não sabe onde vão operar os ratos de automóveis mas sabe a que horas deve passar para mandar o Alfredo fechar a porta. A vizinhança protesta contra a algazarra dos filhos da noite. Hoje e mais logo há o seu desacato mas tudo passa porque ninguém passa sem vir morrer ao Pinto e Pinto.

O Alfredo deita-se quando o sol começa a querer raiar por trás das rochas do Caneiro. Quando o Deodato dá de beber à ursa já é dia claro. Decididamente, este Pinto não se deita com as galinhas…
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* Publicado no Jornal de Sesimbra, na rubrica "Quando morre a madrugada - Retrato de uma Certa Sesimbra: Aos filhos da noite".

1 comentário:

  1. Absolutamente deslumbrante!

    Embriagado pelas palavras que acabei de ler, não posso deixar igualmente de saudar efusivamente o Alfredo (desculpai se o voltei a baptizar) que revelou tão esmerado gosto na imagem escolhida para acompanhar tão bonito texto!

    Uns petiscos, ambos "os dois"!!!

    Boa noite, ó mestre!

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