__________________________________________________________________

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 40


Naquele tempo*

António Cagica Rapaz

Um novo ano começa e com ele se ultrapassa largamente o primeiro terço deste século 21. De facto, 2039 é um marco histórico, há um século começava a segunda guerra mundial. Apetece-me hoje reflectir um pouco sobre a fragilidade das nossas convicções e conceitos, muito mais passíveis de evolução e alteração do que nós imaginávamos. O que ontem parecia certo e irreversível surge-nos hoje ultrapassado, obsoleto e desajustado.

Na última década do século 20, aí por volta de 1994-95, mais coisa menos coisa, o nosso “Sesimbra Tribune” chamava-se prosaicamente “O Sesimbrense” e era apenas constituído por folhas de papel. Nessa altura estava-se a dar os primeiros passos, hesitantes e incrédulos, na Internet, espécie de pré-história da actual Rede Sideral Interplanetária. E lembro-me de ler nesse jornal de papel (dá vontade de sorrir) que sujava os dedos e amarelecia com o tempo, certos artigos de tonalidade saudosista, recordações, evocações e variações em torno do tema glosado e estafado dos “bons velhos tempos”.

Nessa altura, teria eu os meus sete ou oito anos, o mundo circundante parecia-me maravilhoso, «curtia bué» como se dizia então. Era o apogeu dos vídeos, computadores, televisão por cabo, moto de água, moto-quatro, jipes infernais, Mac Donalds, ketch-up e Coca Cola, o paraíso acelerado. Por isso me parecia aberrante, insuportável e irritante ler as lamúrias de alguns piegas que vinham com histórias do tempo da Maria Cachucha, as armações, as ruas enfeitadas, a lota encostada à Fortaleza, eu sei lá, baboseiras, lamechices bolorentas e bafientas.

Ora hoje, mais de quarenta anos volvidos, eis-me aqui a dar a mão à palmatória, a fazer a minha penitência porque, apesar dos inacreditáveis progressos tecnológicos, confesso ter saudades dos anos 90, desse inesquecível fim de século. E compreendo agora que os velhos piegas dessa altura pudessem recordar, enternecidos, os seus anos 50 e 60. É verdade, agora entendo e explico porquê. Hoje há tudo, absolutamente tudo quanto é imaginável, útil, supérfluo, perfeito, prático, eficaz. Mas a qualidade de vida não é o que foi…

Por exemplo, os actuais engenhos individuais de transporte organizado (também designados por EITO) são eficientes, rápidos, mas inegavelmente assustadores. Por isso se diz que hoje toda a gente se desloca com facilidade, mas anda tudo a EITO. Comparadas com estas máquinas diabólicas, as motorizadas dos anos 90 são como triciclos a pedais ao pé das SUSUKI e/ou YAMAHA daquela época. Dizem que nesse tempo a Guarda chamada Republicana só andava perto do jardim e no largo da Marinha a multar automobilistas distraídos enquanto as motos roncavam marginal fora e as motorizadas de escape ruidoso circulavam em total impunidade. Hoje é o mesmo com as Patrulhas Espaciais que nada fazem perante a velocidade louca e a proliferação incontrolável dos engenhos. Ainda me lembro de certos aceleras na antiga marginal, quando ia pela mão do meu pai a uma esplanada pequena virada para o mar. Era do senhor João (ainda é vivo, julgo eu), era o café Martelo e no seu lugar está hoje o “Pronto a despir”, ou seja, o “strep-tease” misto colectivo.

Ali perto ficava a Fortaleza que, em tempos idos, albergou a Guarda Fiscal, instituição arcaica desmantelada tardiamente. Hoje é o Casino Ibérico, com esplanada reservada ao estacionamento dos famosos ENA, ou seja, engenhos navais aéreos, anfíbios de descolagem vertical. Tão bonita e majestosa, a Fortaleza transformou-se num antro de perdição e desbragamento.

E a lota? Já não é do meu tempo a lota à beira da Fortaleza, só conheci a que funcionava na doca. Recordo-me, aliás, da celeuma levantada pelas obras de aterragem que desfiguraram o velho porto de abrigo, a justa revolta e a batalha vigorosa travada por um tal Filipe (bela figura de cabelos brancos) e um Batista que rejuvenescia com o seu bairrismo e ardor polémico. Ambos foram pilares vitais do velho “Sesimbrense” durante anos. Hoje já não há lota, já não há o chui dos compradores, nada. Como sabeis, os barcos estão todos equipados com a aparelhagem adequada à pesca, amanho e congelamento imediato. O peixe transita depois, directamente, das câmaras frigoríficas dos barcos para os contentores que o levam para o Super Hiper Market, de 4 pisos, construído pelo presidente Ezequiel Júnior no local da antiga praça. Ai que saudades das sardinhas do Júlio Galgão, das navalhas do Bacalhau, do espadarte do Álvaro!

Ali perto, onde se erguia o monumento ao Pescador, está agora uma estátua ao Tony da Marisqueira, figura emblemática da boémia que transformou um modesto café num restaurante requintado. Fez isso e muito mais, ao longo de uma vida de trabalho e malandrice nos braços da noite velha. Ouvi contar, é quase uma lenda, que o seu bigode fez furor e muitas cócegas, não sei. Dizem que era um calmeirão simpático, de gargalhada sonora e que na antiga Marisqueira ainda entraram lobos do mar autênticos, de pele tisnada e boné de pala curta, um tal capitão John (não garanto que fosse irlandês) e o tio Escuminha. Aliás, tudo isto vem na página TONY que pode ser consultada nos terminais da biblioteca municipal Rafael Monteiro, no Forum Cultural do Castelo. Lá se encontra igualmente uma colectânea de todas as crónicas que vinham na última página do velho “Sesimbrense”, não me ocorre agora o nome do autor…

Mas vejam só como são as coisas. Consta que, durante anos, um homenzinho de boné, calça branca e camiseta de cavas, vendeu bolos e pastéis na praia. Era, salvo erro, um tal Zé Tucha que, pelo tarde, se converteu aos ideias de Jeová. Foi a pedra sobre a qual foi construído o que hoje é designado pelo “Colectivo Espiritual OLARAJÁ” e que ocupa as instalações que na origem eram o Hotel do Mar, em frente ao actual pontão Explorer. Este pontão começou por ser, nos anos 90, um amontoado de pedregulhos monstruosos e hoje é um dos sete que funcionam como suporte e enquadramento da marina.

Junto ao jardim havia o lar de idosos, hoje chamado Antecâmara. A liberalização da eutanásia, aprovada há dez anos pelo Parlamento Municipal, permitiu colocar à disposição de cada pessoa o comprimido que abre. Sem dor e instantaneamente, as portas do além. Também legal é, há muito tempo, o consumo de droga, distribuída, aliás, gratuitamente em qualquer supermarket. As autoridades e o público em geral, todos concordam ter sido uma boa decisão. Os mais viciados não resistiram à tentação nem à overdose. Os outros não ligam porque já não é fruto proibido. Ficam-se, alguns raros, por umas coisas leves a que ninguém chama droga, mas sim Pó de Evasão Individual para Devaneio Onírico, isto é, simples veículo de sonho, como o nome é muito comprido toda a gente o conhece pelas iniciais…

Em matéria de transportes colectivos, é de referir o admirável progresso verificado com o “OverTejo” que, em dez minutos, nos leva da plataforma da Alfarrobeira à Espiral de Neptuno, antiga Praça de Espanha.

Quem anda muito triste e acabrunhado é um velhote que, em tempos, teve o melhor restaurante de Sesimbra e que ia aos arames com as motorizadas barulhentas. Um dia entendeu que o único remédio era dar-lhes com um remo no capacete (ou nos cornos, já não sei bem) e, desde então, começou a empreender, a empreender, a cismar. Passa os dias no muro, de remo na mão à espera de motorizadas e não ouve quando se lhe diz que motorizadas só no museu da Cilindrada.

E é assim, temos de viver com o nosso tempo, mas por vezes custa. Hoje a vida será mais fácil, mas perdeu-se poesia e romantismo. Só conta a eficácia, o que prevalece é a ténica. Ténica? Mas onde é que eu já li isto?...

____________
Publicado originalmente em O Sesimbrense.

2 comentários:

  1. Extraordinárias previsões!!!
    É uma sorte eu já não andar por cá em 2039.

    Por agora, limito-me a sorrir abertamente perante tanta imaginação.
    Dá gosto.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

    ResponderEliminar
  2. Absolutamente Brilhante!!!

    Uma Sesimbra do futuro que apenas poderia resultar de um texto de Carnaval, Amizade, Gratidão, Invenção, Companheirismo e Alegria, tudo predicados ou iniciais à altura de um bom RAPAZ!

    Boa noite, ó Mestre!

    ResponderEliminar