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segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 38



Forno

António Cagica Rapaz

Na alvorada dos anos 60, abriu em Sesimbra uma boîte, coisa insólita quase à margem de uma lei ferrugenta e de uma moral cheia de teias de aranha. Ficava em frente da cocheira do Zé Dolfo e chamava-se Forno. O dono era um tal Vítor Marques, figura insinuante das sortidas de veraneio, pessoa requintada, homem do mundo.

O Forno aparecia como um lugar de perdição, antro diabólico, célula viciada de Sodoma e Gomorra, palco de mirabolâncias musicais e depravações de luzes indirectas. A entrada deste templo de Belzebu era guardada por um D. Quixote esguio, de bigodaça autoritária, conhecido por Fachadas, velho malandro de Cascais, especialista de portarias tenebrosas, filho da noite, rufia reformado, espadachim de cartolina, hussardo de opereta, marialva de becos escusos, artista de sonhos desfeitos. O Forno era a magia do Verão, a embriaguez da música, o calor da voz do Tom Jones, fábrica de romances de uma noite. O Vítor Marques era o mestre de cerimónias, o inspirador, um toque de classe que muitos invejavam...

No Inverno, Sesimbra voltava a ser uma terra sombria, fustigada pelo vento sul e pela chuva. E eu gostava de ir até ao Forno, vazio, mas ainda impregnado do perfume do Verão. E lá passei horas infinitas a conversar com o Vítor Marques, com a música a meia haste, na evocação das mil histórias da noite. Ele era, ao mesmo tempo, locutor de Rádio, programas, anúncios e, até, um folhetim que fez as delícias da minha mãe e da minha prima Judite. Foi em 1956, por aí, e era patrocinado pelo Polycolor. “Se aos seus cabelos quer dar outra cor, lave a cabeça com Polycolor. Acabam-se as mágoas e chega o amor, depois de usar o Polycolor”. Os heróis desse folhetim (Henrique e Olga Sampaio) eram interpretados pelo Vítor Marques e a mulher, Manuela. Porém, os nomes dos intérpretes não eram anunciados e só alguns anos depois, numa dessas noites de Inverno, fiquei a saber. Quase imagino a minha mãe ir esperar-me ao Forno, de braço dado com a Judite, para ficarem a conhecer o Henrique Sampaio da voz suave.

O Forno ficou como um marco na história marialva de Sesimbra, e o Vítor Marques era um fidalgo de botão na lapela, copo na mão, presença distinta, observador mordaz. Nos labirintos da noite havia rivalidades de estimação e o Vítor Marques não escondia certa antipatia pelo Tony. Dizia ele que cada um é para o que nasce e que o lugar do Tony era atrás do balcão da Marisqueira, de mangas arregaçadas, a dar gargalhadas. Mauzinho, mas exemplar...

1983

2 comentários:

  1. Ah, que maravilha! "Acabam-se as mágoas e chega o amor, depois de usar o Polycolor"...
    Que bem me lembro!

    Lamento é não ter chegado a conhecer o Forno.
    Falha irreparável.
    Belos tempos, apesar de tudo!

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Já sei onde é que as catraias casadoiras da época, e talvez as outras também, encontravam os seus bonitos rapazes, tão bonitos e jeitosos que eram autênticos pães!

    Aqueles que, nas noites frias, depois de um pé de dança e uns copos, por certo as aqueciam.

    Afinal, eles estavam ou vinham do Forno!

    Mais uma preciosidade "made in" CR (Cagica Rapaz).

    Boa noite, ó Mestre!

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