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quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 36



Valdemar, sempre ele

António Cagica Rapaz

- É inglesa, mas é do campo!

Tal foi o veredicto do juiz Valdemar Laranjeiro dos Santos no supremo tribunal da malandrice que era o Espadarte Clube. Numa noite de rambóia, na mesa comprida do canto, o belo Valdemar apreciava o estranho estilo de uma mocetona que dançava desajeitadamente. Após breve análise, saiu a sentença:

“Eh pá, esta gaja é do campo!”

- Tás maluco, pá – replica o Alfredo Filipe.

- Já te disse, é do campo. Já viste como ela dança, parece que anda aos bordos, toda desengonçada. A malvada vai à zinga! Vai por mim, é do campo.

- Não pode ser, pá, a mulher tá no Espadarte, é inglesa.

- Tá bem, é inglesa, mas é do campo, que lá também há campo.

Genial desarrincanço este do Valdemar, notável, de facto. Em Inglaterra também há campo, campo e bailes, algures em Quintola Road ou em Caixas Cottage. Portanto, o Valdemar tinha razão. Aliás, às duas da manhã, à luz mortiça das velas, à sombra dos barrotes do Espadarte Clube, depois do Pinhal ter posto o Rose garden, I beg your pardon pela décima vez, o Valdemar tinha sempre razão, a razão do mais forte, do mais descontraído, do mais hábil num flamengo improvisado ou num samba endiabrado. Nos anos 60, o Verão era uma festa permanente para o Valdemar que nem por isso faltava na lota para ganhar o peixe de cada dia. Até chegar a noite, as noites de aventuras, de ousadias, escaramuças no Forno, abordagens na Marisqueira, emboscadas no Hotel do Mar.

Na lota, à beira da fortaleza, pimpão e galgão, com um olho vigiava o peixe que vinha do mar e, com outro, o peixe de terra que se encostava ao muro com olhares meigos e sorrisos cheios de promessas.

- Hello, Val! – lá estavam elas à espera que na lota soasse o último chui para embarcarem na traineira da noite que largava as amarras e ia perder-se no mar da bruma.

O seu inglês era modesto, mas o Valdemar não tinha complexos e, com meia de italiano mais um toque de espanhol, boa noite, ó mestre, vamos lá atão.

Em vida anterior, o Valdemar terá sido, provavelmente, pirata da Jamaica, aventureiro de Maracaíbo, garrafa de rum, chapéu de aba larga e pluma ao vento, gesto largo, palavra fácil, uma mulher em cada porto.

No futebol podia ter ido longe, mas não quis, não sentiu que valesse a pena, era outro tempo. O Valdemar foi sempre cigarra, filho da noite. Por ela se perdeu, com ela viveu plenamente, intensamente, a noite, sim, mas também o sol, as vitórias do Desportivo. Bebeu essas taças que empunhou com ambas as mãos, mergulhou nelas, fez espuma, regalou-se, viveu.

A lota fugiu para a doca, o Espadarte Clube morreu, as marés levaram a nossa mocidade. Mas o Valdemar aí está, quase na mesma, sempre ele, como diria o meu compadre Alves do Santos se tivesse de comentar os lances da vida deste Valdemar que é uma legenda de uma certa Sesimbra.

Hello, Val, Valdemar, sempre ele...

1984

1 comentário:

  1. mais uma bela prosa.

    (desconfio que este grande Valdemar é familiar do Orlando Laranjeiro dos Santos, sesimbrense de nascimento e almadense de adopção)

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