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sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 34

as crónicas da Eventos...


foto tirada
daqui
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Presépios*
António Cagica Rapaz

Quando éramos crianças, a véspera do Natal era o dia mais longo, tão grande era a nossa ansiedade…

A escola começava em 7 de Outubro e, muito rapidamente, o Natal emergia das brumas de Novembro para ir ganhando contornos nítidos, à medida que na montra do Lima iam aparecendo
brinquedos.

A Igreja ocupava um lugar importante na nossa vida, no nosso quotidiano, em virtude da religiosidade ancestral da vila e, sobretudo, pela relação afectiva que todos tínhamos com o padre João. As imagens do catecismo, a poesia e o suave encanto que envolviam aquela quadra maravilhosa levavam-nos a construir presépios à medida da nossa emoção e da nossa fantasia.

O primeiro passo era o namoro às cortiças. Eu costumava valer-me da bondade do tio Zé Francisco, mandador das armações do Risco e do Burgau, pai do Fernando Viola, que sempre acabava por fornecer o mágico adereço que servia de suporte ao nosso universo de inocente deslumbramento. Por milagre caseiro, a cortiça transformava-se em montes, encostas, grutas, leito de riachos e lagos, outeiro de moleiro, planície longínqua, miragem de reis magos.

Da praia vinha a areia, do ribeiro alguma verdura e, aos poucos, o presépio ia ganhando forma. A guardadora de patos, junto ao espelho, que fingia ser lago ou riacho, contemplava o lenhador que, de molho às costas, se dirigia para a casinha diluída na encosta de cortiça.

Em cada dia, todo aquele mundo se agitava, os camelos avançavam um centímetro, o moleiro aproximava-se das velas alvas do moinho, as ovelhas dispersavam-se sob o olhar do pastor fleumático e do cão vigilante, bucolismo enternecedor, ali a dois palmos da gruta onde o Menino se mantinha caladinho e aconchegado nas palhinhas, que Deus o benzia.
Ali ao lado ia crescendo a seara, verde e frágil, verdadeira magia dos grãos de trigo, milagre da Natureza, materialização singela, clara e concreta do simbolismo que o presépio encerra…

Em muitos países, o ornamento preferido é a árvore de Natal, decorada com mil berloques e rodeada de presentes que, cada vez mais, foram constituindo a maior razão de ser de uma celebração irremediavelmente profana.

Em Portugal, a tradição do presépio foi cedendo terreno à facilidade do pinheiro enfeitado, sinal evidente da adulteração dos valores espirituais que caracterizavam os Natais do passado. O presépio era a partilha do sonho, a construção de um universo poético, ideal, fascinação repetida em cada Dezembro da nossa inocência.

Ao longo dos anos continuámos a compor, a retocar o presépio da nossa vida, nele colocando algumas das figuras que fomos elegendo, à luz da nossa sensibilidade, em função dos nossos afectos, na escola, na oficina, na barca, na tropa, no escritório, na nossa rua, colocando mais alto ou mais baixo, mais perto ou mais longe, mas sempre próximo do nosso coração. Em cada círculo de convivência fomos construindo uma cabana para nos abrigarmos das turbulências da vida, reunindo pastores pachorrentos, moleiros tranquilos, guardadoras de patos maliciosas, reis magos bondosos, estrelas amigas para iluminarem o nosso caminho.

Sesimbra é um imenso presépio que vai do Caneiro à doca, enquanto houver missa do galo o espírito de Natal perdurará.

O André e o Álvaro Bizarro teimam em preservar a poesia dos presépios da nossa meninice porque o progresso afundou as armações e já não temos cortiças. Uma vez por ano, há no ar um perfume de fraternidade, um brilho diferente nos olhos, não é como foi, é o que é, mas é Natal. Com pinheiro enfeitado, com presépio de plástico, sem seara, mas é Natal. Triste é a solidão, a secura de quem se limita a comprar, a dar e receber prendas, sem amor, por tradição mal vivida.
Pior será quando deixarmos de nos reunir, quando nos limitarmos a trocar mensagens de “Feliz Internetal”…

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* Publicado no n.º 10 de Sesimbra Eventos, Natal/Ano Novo de 2000-2001.

1 comentário:

  1. É um facto: com grande parte dos nossos amigos já vai funcionando a "Feliz Interneta"...
    Valha-nos a família que continua a juntar-se (no meu caso) à volta da mesa, com o presépio ao lado, a árvore ao fundo, e os ausentes no coração.

    FELIZ NATAL, Ó MESTRE!

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