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sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 32

as crónicas da Eventos...


foto tirada daqui


“Num’ânsia”*

António Cagica Rapaz

Há muitos anos encalhado na maré vazia, o Numância gerou e alimentou lendas e fantasias, foi centro de atenções, presença insólita, navio fantasma, antro de conquistadores, contrabandistas, espiões infiltrados, porões de mistério, nau de corsários na praia do tio Abel.

A rapaziada olhava, com respeito e temor, as cavernas sombrias, ninhos de polvos gigantescos, safios temíveis, moreias dilacerantes, refúgio do capitão Nemo saído das “Vinte Mil Léguas Submarinas” que nos deslumbraram a toda a largura da tela do cinemascope, milagre que o Parque proporcionava em cada noite calma, enquanto baloiçavam os eucaliptos da cordoaria. Os aventureiros do colchão de borracha armavam-se até aos dentes, com baldes, pás e bóias à cintura, para a expedição da última esperança de encontrar uma sereia na casa das máquinas ou um polvo enrolado na barra de leme. Os limos enormes, linguados castanhos, criavam raízes na estrutura de chapa ferrugenta e formavam uma barreira assustadora.

O Numância era o nosso Adamastor, a nossa Atlântida, palco de aparições quiméricas do enigmático cavaleiro Emílio da Rocha Negra, senhor de Vintemilhas, mais conhecido pelo Corsário Negro que, ao leme do seu “Relâmpago”, rasgava a noite a coberto da espessa bruma do mar dos Ursos, rumo à ilha das Tartarugas…

Quando caíam os primeiros nevoeiros de Setembro que o Rafael soprava das ameias do Castelo, o Numância parecia emergir das profundezas medonhas. Mãos e barbatanas fustigavam as águas com redobrado vigor, acelerando o regresso do colchão de borracha, fugindo à borrasca, em busca da praia, “num’ânsia” de segurança que só acalmava quando, do alto da gávea, o gajeiro gritava “Já há pé!”. Extenuados, corações a bater, só descansávamos quando víamos surgir no horizonte a silhueta branca do Zé Tucha, apregoando “Há bolos ò pastéis!”.

Logo os corsários da pedra de Zé Manel interrogavam: “Então e pastéis também não são bolos?”.
O bom do Zé Tucha, pacientemente, lá nos ia explicando que não, que há diferenças, pastéis são pastéis, bolos são bolos. Porém, os malandrins queriam era conversa e, no dia seguinte, voltavam com a provocação. Mal soava o pregão “Há bolos ò pastéis” surgia a interrogação irritante: Então e pastéis também não são bolos?”.

Com o tempo, esgotavam-se os bolos, os pastéis e, naturalmente, também se esgotava a paciência do Zé Tucha, que respondia, fleumática e pragmaticamente: “A puta da tua mãe!”…
Era assim, na praia dos piratas, no golfo de Maracaíbo, linguagem rude, espada na liga, gancho afiado, pala preta no olho esquerdo, brinco e lenço, barba hirsuta, chapéu de pluma, perna de pau, bandeira içada com a implacável caveira ao vento, canhões assestados e nós assustados, vem aí o cabo do mar, esconde a bola, chuta prà água.

O Numância foi desmantelado pelo mar e pela dinamite, lenda diluída, sonho desfeito, presépio desmontado. A praia do tio Abel mudou-se para o Espadarte, rumo à Califórnia. E nós abalámos para a vida que a muitos arrastou para o largo. Às tantas voltamos ao porto, um tanto à deriva. Atracamos como podemos, a carta de navegação está desactualizada, a bússola tresloucada, fiamo-nos no instinto e na memória enferrujada, e mal reconhecemos as tabernas do cais. Só o mar não mudou…

1997

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* Publicado no n.º 40 de Sesimbra Eventos, de Outubro/Novembro de 2005.

2 comentários:

  1. quase todas as terras com mar têm histórias próximas do Numância...

    lembro-me do barco encalhado no mar da Foz do Arelho (os mastros apareciam na maré baixa...), alvo de tantas especulações, e sonhos, claro...

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  2. ..."Às tantas voltamos ao porto"...
    E o Numância voltou, curiosamente, 9 meses (mais dia menos dia) depois de inaugurar aqui a primeira viagem...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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