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quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 39




Soledade Welch*

António Cagica Rapaz

Durante anos longe de Sesimbra tenho escrito muitas dezenas de crónicas que são a expressão de certos estados de alma, a revelação de um rolo infinito de “fotografias” que fiz ao longo de muitos anos. Tal como as cores impressionam a película, também eu fiquei impressionado com a beleza, a ternura, a gentileza, a lealdade, a fraternidade, a inveja, a maldade, a baixeza e com tantos outros sentimentos, emoções e situações que encontrei, conheci e observei.

Aconteceu comigo como sucede com todos os seres humanos, de Sesimbra e de algures.

Do que vi e vivi guardei certas recordações como cada um de vós terá as suas. Muito cedo senti vontade de as expor em praça pública, pelo gosto da escrita e por pensar que bom número de pessoas as lê com grado.

Naturalmente, nem tudo se pode contar, porque todos temos o nosso jardim secreto, certo pudor e respeito por outras pessoas que poderiam não apreciar as minhas revelações.

Por outro lado, não utilizo esta forma de expressão pública para atacar ou denegrir alguém, o que não significa que não tome posição em relação a situações de interesse geral, pois tenho opinião e julgo ser capaz de a apresentar correctamente.

No fundo, muitos sesimbrenses poderiam colaborar nos nossos dois jornais, havendo certamente muita coisa interessante e importante a dizer. Tal como sucede com o tal pó de lavar a roupa, também um dia eu direi que julgava que as minhas recordações eram belas antes de ler as tuas.

Um amigo perguntava-me há tempos se não haverá quem pense que eu distribuo notas às pessoas como os júris dos festivais da canção, proclamando quem é bom e deixando os outros na sombra. O tema é interessante e direi que não sou árbitro nem juiz nem patriarca nem modelo de virtudes, longe disso.

Não possuo as tábuas da lei nem a cartilha das qualidades excelsas. Por isso ninguém é bom só porque essa é a minha opinião. Por tudo e porque posso enganar-me.

Aliás, o importante para o leitor não é que eu chegue aqui escrevendo apenas que o Carlinhos da Rã é um bom rapaz. Não se trata de distribuir medalhas nem certidões de bom comportamento, muito menos registos criminais.

Dizia Sartre que escritor não é quem escreve certas coisas mas quem escreve de certa maneira. Ora o que eu escrevo (mesmo sem ser escritor) pouco importa, o que conta é que o faça de certa maneira, de forma a proporcionar leitura agradável. Claro, se houver um fundo de verdade, um fio pelo menos, se falar de situações e pessoas conhecidas, melhor ainda, mas vale menos pelo fundo do que pela forma.

E se não falo de todos quantos pensam que lhes poderia arranjar aqui um lugar como na geral do Parque, a verdade é que para isso há a lista telefónica. Não posso ter de todos a mesma imagem, a mesma impressão gravada no meu espírito. Uns estão no primeiro plano das tais fotografias, outros no segundo plano e outros não aparecem porque não cabem, não entram no campo visual da minha máquina fotográfica que, por vezes, pode não funcionar tão bem como a do Américo fotógrafo que tinha como modelo, na loja, a Lucinda.

O mestre Adelino, de navalha na mão, de vez em quando deitava um olho à Lucinda e lá ficava o desgraçado do freguês com uma patilha mais curta. Podem acreditar, é pura mentira…

Por isso (e respondo ao meu amigo) as pessoas e as situações não são melhores ou piores porque eu decido, julgo ou afianço (não sou aferidor como o filho do tio Chico Carteiro) e apenas dou os meus pontos de vista, as minhas impressões, como o Damião poderia ter dado se resolvesse contar o que viu e ouviu naquele Grémio onde o seu café ficou famoso.

Muito sabem o Damião, o Charuto e o Alfredo que teriam mil histórias para contar. Como eles não o fazem, avanço eu com pouca cerimónia, com um desplante quase igual ao do Valdemar, com a pouca vergonha do meu tio Justino Come-figos, sem o talento do meu antigo Professor Vitorino Nemésio, sem a pureza de estilo do meu compadre Alves dos Santos e apenas com algumas ideias, certa forma de contar e a vontade de estar convosco.

Quando no Diário de Lisboa ou no Record coloquei os nomes do Deodato ou do Capitão Domingos, intriguei muita gente por esse país fora, mas sobretudo dei-lhes alguma satisfação, certo orgulho comedido. E tornei mais viva e concreta a narrativa pois se falo de um café nada custa acrescentar que é do Zé Filipe ou do Alfredo. Se era um cinema, claro, era o do João Mota, quanto mais não fosse porque a Soledade é minha prima e o Rui casou com a Rosa Maria que também é minha prima. Claro que estes pormenores são de pouco interesse (a não ser para as pessoas visadas) e se o faço é apenas por brincadeira e para evocar as pessoas que nas fotografias e na televisão agitam a mão para saudar a família, os amigos e os vizinhos de patamar. Assim eu saúdo os primos e as primas. Escuso de lhes escrever, poupo o selo, economia de tempo e vantagem que retiro desta correspondência.

Tudo isto é apenas devaneio, conversa de passeata entre o Central e o Espadarte, porque na vida há coisas graves que devem ser tratadas de outra forma. Porém, há um tempo para cada coisa e, por vezes, é bom distrairmos o espírito, abordar com ligeireza e aparente frivolidade outros temas porque a vida se encarrega de nos colocar uma cruz sobre os ombros. Para uns ela é leve, outros arrastam-se sob o peso da amargura anos e anos.

Por isso, se pudermos sorrir com alguma ternura, daí não virá mal ao mundo. Não é verdade, Candinha?

Escrevo o que me passa pela cabeça, enquanto sentir vontade e enquanto souber que não aborreço muito os leitores.

E imaginem que hoje, ao iniciar esta crónica, pensava falar-vos da Sofia Loren, da Raquel Welch, da Brigitte Bardot e outras vedetas que tive a ocasião de ver pessoalmente, aqui em Paris, de perto, como daqui àquela cadeira.

E afinal fugiu-me a veia para a rua do Saco fundo, vieram à tona da inspiração outras ideias e a Sofia Loren fica para a próxima.

O pior é que tive de arranjar outro título, porque o que previra já não encaixa. A culpa é vossa, do Carlinhos da Rã e dos outros que me distraíram de tal forma que acabei por falar da minha prima Soledade em vez da Raquel Welch. Não presta, sabes?!!

É assim, são fraquezas, são franquezas, é o que vem à rede…

E, já agora, confessem lá, o título deixou-vos intrigados, não deixou?
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* Publicado originalmente em O Sesimbrense.

2 comentários:

  1. soube muito bem ler estas palavras.

    a vida de "escriba" é mesmo assim, tanta gente que quer aparecer na "fotografia" e não cabe nas nossas memórias, sem que tenhamos feito algo para que isso aconteça...

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  2. Dá vontade de escrever: A Soledade que tenho de quem escrevia tão Well...chhhhhhhhh!!!

    E mais um texto fabuloso que fica para a posteridade, aproximando-nos do Autor!

    Boa noite, ó Mestre!

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