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quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 38




Carta ao Fernando Viola*

António Cagica Rapaz

É provável que o Fernando Viola tenha lido a carta ao capitão Domingos. E não é impossível que tenha sentido alguma decepção quando verificou que eu fiz uma breve alusão a uma conversa com o Augusto do Salva-vidas e não mencionei que ele Fernando se juntara a nós a certa altura.

O Fernando Viola da minha infância não tinha aquele bigodinho à Errol Flynn. Era o Fernando Manuel da Encarnação Viola aluno do Colégio no Dr. Costa Marques ou melhor António da Costa Marques e tanto ele como eu obedecíamos aos toques de campainha do Manuel Figueiredo Elisbão. É curioso como nos ficam na memória os nomes completos dos nossos camaradas de escola.

O meu amigo mais antigo é o Carlinhos ou seja o Carlos Rafael Carapinha Pólvora que continua a ser o mesmo rapaz correcto e atencioso, nas bombas da Sacor.

Alguma confusão se estabelecia com o Carlos Manuel Ribeiro Carapinha, barbeiro artista, belenense dos antigos, e que na escola era apenas o Carapinha, vizinho do António da Silva Clemente e do António Sebastião Vieira Fidalgo.

Outros Antónios, o António Fernando Batalha Alves, o António José Saraiva Preto e o Pedro António Rosa Gonçalves, sem falar no Luís Filipe Dias Cagica Pinto, no Joaquim Manuel da Silva Penim, no meu capicua Manuel António Alves Pinto ou no Julião Gomes António morador no Casal das Boiças, para quem não souber.

Mas voltemos ao Fernando Viola que morava numa viela escondida, à sombra da Fortaleza, à beira da Rua de Alfenim.

A Rua de Alfenim evoca os Santos Populares e nunca esquecerei um ronda, uma volta à Vila em 1968 com um grupo de malandros do qual fazia parte o nosso António do Porto que largou uma “bomba de S. João” em plena Rua de Alfenim causando espanto inaudito. Foi um lance inesperado de efeito espectacular.

O António viu o Helder Chagas no poial de uma porta a fazer uma serenata a duas donzelas que moravam na Calçada e perguntou-lhe se ele acompanhava aquele ritmo. Palavras não era ditas já ele saltava com a sua agilidade incrível e, todo no ar, largou a “bomba”. Parou a roda, não à falta de haver quem cantasse mas pela surpresa que paralisou os folgazões de mão dada à volta da fogueira. Só visto ou só ouvido…

É uma perda e uma pena não termos ruas enfeitadas como nesse tempo. As ruas enfeitadas eram o perfume do verão, o alecrim e o rosmaninho, a poesia e a fraternidade, o esforço de muitos meses, a entreajuda, a comunidade de espírito, a amizade à volta da fogueira.

A simplicidade de certas decorações em nada diminuía o mérito de todos quantos generosamente participavam na criação. A rua passava a ser a casa de todos, a sala comum, o pátio das cantigas.

De dia a rua era fresca porque as decorações protegiam do sol e, à noite, era o deslumbramento das velas, das luzes e das estrelas. A fogueira era o vulcão de alegria pela madrugada dentro. O rasgo do polvo, a batata na cinza, o petisco à porta, o vinho alegre, Sesimbra dava as mãos à amizade e à alegria, saudável e sincera.

O tema dominante, a fonte de inspiração era o mar e os motivos ligados à pesca ocupavam um espaço tradicionalmente vasto. Mas havia quem gostasse de variar. Era o caso da minha tia Lucinda que decorava a rua com um requinte admirável, através dos seus dons artísticos excepcionais.

Se tivesse nascido no sei de outra família ou noutra terra, a minha tia Lucinda poderia ter sido uma artista porque nasceu com o toque de génio que não se aprende mas apenas se aperfeiçoa ou trabalha. Ela desenha e pinta na perfeição, canta, assobia, faz versos, corta, cose, compõe, arma, sei lá que mais. A sua rua nunca ganhou um prémio por não respeitar os temas piscatórios mas era sempre a mais bonita.

Nas ruas havia sempre quadras de sabor popular e seria interessante fazer-se uma recolha dessa expressão tão rica e autêntica.

Uma das quadras mais características, era alusiva ao St.º António e rezava assim:

Santo António era bom santo
Pôs os pés no alcatrão
Jogou à porrada c’o mestre de terra
Foi-se embora da armação
Era no tempo em que havia armações. E o pai do Fernando Vila, o tio Zé Francisco, era mestre de uma delas mas não creio que tenha sido ele o opositor do St.º António. Certa vez fiz umas quantas quadras para a rua de Alfenim precisamente e uma delas ficou-me na memória porque era bem ao gosto picante da nossa gente. Era assim

Não há rua por mais pobre
Que uma fogueira não tenha
Mas para tanta labareda
É precisa muita lenha

Destas e doutras é que o nosso bom povo gosta, sempre pronto para a galhofa, de chalaça em riste, com a piada na ponta da língua.

E vejam só até onde o Fernando Viola já nos levou, nesta divagação ao correr da pena, de arquinho e balão, lá vamos na marcha.

E no entanto a imagem que conservo do Viola não está ligada ás ruas enfeitadas nem ao verão. Pelo contrário, num dos instantâneos que dele guardo, o Fernando é o filho do homem que me dava as cortiças para o presépio.

Quando Dezembro chegava, cheirava a Natal. Logo que os primeiros brinquedos apareciam na montra do Lima o sortilégio do Natal crescia em nós.

E começavam as visitas ao tio Zé Francisco para namorar as cortiças da armação. Uma hoje, amanhã outra e, pouco a pouco, o presépio tomava forma. Depois era a disposição das figuras, o musgo macio e a poesia do presépio cristão.

Lá em cima, o padre João orientava a decoração da igreja para a missa do galo e em todos nós havia uma febre maravilhosa, uma expectativa angelical, uma curiosidade inocente e um entusiasmo contagiante.

No verão enfeitavam-se as ruas, no Natal era o presépio com as cortiças do tio Zé Francisco, o pai do Fernando Viola que encontrei noutro dia na rua Direita, às nove da manhã.

Falámos a fugir, disto e daquilo, de banalidades porque estas coisas não se dizem às nove da manhã na rua Direita.

E nem o Fernando sonhava que a evocação desses instantes nos levaria a esta digressão através de ruas enfeitadas onde a roda está para da à falta de haver quem cante. Ora agora cantei eu, mas a roda não segue avante porque a tradição das ruas enfeitadas se esfumou como as armações e tantas outras coisas.

Hoje há aparelhagens estereofónicas nas lojas de “companha”, há quem enjoe o marisco apesar do preço, há abastança onde ontem havia necessidades, muitas coisas mudaram, o progresso traz consigo o proveito de alguns quando o ideal seria o bem estar de todos.

Tanto melhor para os que beneficiam mas agravou-se a diferença. E perdem-se valores morais e culturais, vive-se a correr, já não há lugar nem tempo para a poesia.

Restam as cinzas de fogueiras apagadas. Que ao menos as não apaguemos na nossa memória.

Desculpa, Fernando, ter agarrado em ti tornando-te testemunha, depois de teres sido inspirador desta excursão saudosa.

Muito se devem aborrecer agora os Santos populares e eles não mereciam este esquecimento.
Pelo menos por um, ponho eu as mãos na fogueira e, diz a quadra, St.º António era bom santo…
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* Publicado na edição de 25 de Maio de 1984 do Jornal de Sesimbra.

5 comentários:

  1. O melhor presente de Natal que recebi.

    Feliz Natal e um prospero ano novo para si e para todos os seguidores deste blog.

    Muito obrigado
    Simone Coelho

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  2. Quanta ternura e quanta saudade atravessam estas evocações de tempos passados!
    O tempo não espera por nós e quando olhamos para o lado, já lá não estão muitos amigos duma vida inteira.
    Ou outros que, sendo recentes, se foram tornando imprescindíveis, como se os tivéssemos conhecido sempre.
    O Natal tem destas coisas: é uma quadra única para a alegria e para a dor.

    Feliz Natal para o nosso caro Escriba e para todos os que por aqui passarem.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  3. mais uma crónica cheia de gente boa e de episódios memoráveis.

    Boas Festas, Pedro.

    abraço

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  4. Para os três Amigos que agora aqui vieram, e para todos os que aqui têm vindo, um santo Natal e um bom ano de 2011.

    PM

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  5. Absolutamente estonteante, na descrição das pessoas e dos ambientes, na beleza e matreirice das quadras, na simplicidade de um presépio com figuras trabalhadas em cortiça, e na coincidência de calhar a sua publicação aqui em época natalícia.

    Boa noite, ó Mestre!

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