__________________________________________________________________

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 37

Saudade: António Cagica Rapaz partiu faz hoje um ano.


António Reis Marques e António Cagica Rapaz em Sesimbra, em Fevereiro de 2009. Foto de João Aldeia.


Carta ao Tó Manel*

António Cagica Rapaz

Todos aqueles que têm tido a amabilidade de acompanhar as minhas divagações neste cantinho da última página, sabem que a certa altura me deu para dirigir cartas a este e aquele. A primeira foi enviada ao meu ilustre primo Domingos, o nosso Capitão Domingos. Depois, foi a vez do Fernando Viola, do Luís Rafael Pinto Cascais (mais conhecido pelo Luís Papa-rebuçados) que faz o favor de não se zangar comigo apesar do descaramento que aqui confesso sem remorsos.

Ora, depois de ter escrito a tanta gente, depois de ter feito desfilar nestas colunas milhentas personagens da nossa terra, chegou a altura de vos revelar um grande segredo. Aqui no andar de cima aparece a minha fotografia e o nome do autor das crónicas. E toda a gente julga que o autor destas linhas é o António Cagica Rapaz, mas não é verdade. É chegado o momento de vos revelar que o verdadeiro autor destas epístolas é o Tó Manel, filho do António Rapaz e da Amália Come-figos, sobrinho da minha tia Lucinda, que tem um jeitão para escrever, desenhar, pintar e assobiar, uma artista consumada que não saiu do anonimato por modéstia.

Hoje resolvi repor a verdade, fazer justiça e agradecer ao Tó Manel porque sem ele estas crónicas nunca teriam existido. Nascemos ambos ao mesmo tempo, na noite de Santo António, na Rua dos Pescadores, como recordou recentemente a minha prima Celestina, com ternura e poesia.

Na nossa terra todos começamos por ser o filho do fulano ou da beltrana. Eu não escapei à regra e, durante muitos anos, fui o filho do António Rapaz.

É assim e está muito bem. Não escolhi pai nem mãe (como nenhum de vós escolheu) mas sinto orgulho nos pais que Deus me deu.

Dito isto, temos de reconhecer que esta coisa de nomes e alcunhas tem muito que se lhe diga.

Trata-se de um assunto complicado, curioso e, muitas vezes, saboroso.

Segundo a minha mãe me contou (mas que isto fique entre nós) eu estava destinado a chamar-me apenas Manuel como o meu tio que morreu na horta do Faria. Porém quiseram os fados que eu tivesse nascido na noite de Satatónhe (também conhecido por Santo António) e daí este António Manuel ou Tó Manel que vocências têm aturado aqui (e algures) mês após mês, neste folhetim de trazer por casa e a conservar em banho Maria. Explicados os nomes passemos aos apelidos. Da minha mãe herdei o Rosa que vinha do meu avô João Come-figos. Do lado paterno recebi Cagica Rapaz com a curiosidade de no bilhete de identidade do meu pai figurar António Manuel Rapaz. Cagica nada. Mistério profundo? Não. Apenas um engano na altura da tropa, tendo sido suprimido Cagica e substituído por Manuel já que inicialmente o meu pai se chamava António Cagica Rapaz. Aliás descobri não há muito tempo um cartão de visita do meu pai com este nome e a menção de carpinteiro como profissão. É uma relíquia que conservo religiosamente.

A minha mãe não morria de amores por este nome Cagica que considerava supérfluo.

Ora ele é perfeitamente justificado já que a minha avó Sabina era Cagica.

Seja como for, a verdade é que até aos 18 anos não me considerei Cagica. Cagicas eram os Chicos, pai e filho, o Cristino, o Lucindo e os outros, filhos daqueles. A minha mãe contou-me uma história muito complicada que metia Galanduchas e que nunca entendi muito bem. Certo é que o Galucha, que andou comigo na escola, se chama Cagica Amigo (se não estou em erro) e tem uma irmã, cujo nome ignoro, que é uma das mais bonitas raparigas que Sesimbra viu nascer.

Quando, aos 16 anos, fui para o liceu de Setúbal, já lá andava o Joaquim Fernando, filho do Cristino Cagica e assim foi que passaram a tratar-me por Cagica também.

Ao dar os primeiros pontapés na bola, em Coimbra, foi Cagica o nome de guerra, o que não encheu de entusiasmo a minha mãe que queria que eu fosse António Rapaz, filho do pai. Porque Cagica é um nome invulgar (de origem africana?) muitas vezes aparecia mal escrito nos jornais o que me levou a mudar ocasionalmente para Rapaz acabando por ficar Cagica umas vezes e Cagica Rapaz outras vezes. Está entendido? Ninguém tem dúvidas? Quem tiver alguma dúvida, levante o braço. Bom, ninguém? Vamos adiante…

E assim foi que o Tó Manel se transformou em António Cagica Rapaz que escreve estas e outras crónicas anacrónicas graças à memória e à imaginação do Tó Manel.

O Tó Manel ficou em Sesimbra enquanto o Cagica começou o seu afastamento no Liceu de Setúbal, depois em Coimbra, Lisboa, Porto e agora em França, onde é conhecido por Monsieur Cagica com acentos nos dois aa. É a vida, com os seus apelos, com as opções a que nos obriga, os caminhos que nos leva a percorrer.

Nascido a 13 de Junho, sob o signo Gémeos esta dualidade é mais que natural. O António Cagica Rapaz escreve o que o Tó Manel lhe segreda. Dá-lhe o toque e o ritmo da sua sensibilidade, mas a essência assenta nas recordações do Tó Manel que ficou aí no Café do Alfredo, à esquina do Central, na loja do Maquino, na Taberna do Mestre Adelino, no Colégio do Costa Marques, no Palco da Vila Amália, nesse berço fascinante que vai do Caneiro à Doca.

Desculpem se desta vez falo de mim. E perdoem-me todos aqueles que tenho trazido a estas páginas sem lhes pedir autorização em meia folha de papel selado, com assinatura reconhecida pela Dona Bárbara ou pela Delmina.

É um atrevimento que tenho tido vezes sem conta ao longo de alguns anos já que dura esta cavaqueira mensal.

As ideias surgem-me por vezes estranhas, bizarras, insólitas. Hoje deu-me para escrever ao outro eu, ao meu gémeo. No fundo é justiça que faço ao Tó Manel que não vejo há muito tempo. De vez em quando vou a Lisboa. Ainda aí estive no mês passado. Vi o Manel António e cruzei-me com o João Salgueiro, antes das nove da manhã, como sucede quase sempre quando vou a Lisboa. O Tó Manel não vi porque (como já vos disse) ele ficou em Sesimbra e, nas minhas visitas a correr, não tenho tempo de ir ao muro da lota nem à beira da pedra alta.

Por isso, e para terminar, peço-lhes um favor. Se o virem, digam-lhe que qualquer dia apareço. Se o virem digam-lhe o que pensam das ideias que ele me manda e que eu transformo em crónicas breves. Se o virem dêem-lhe um abraço. O Tó Manel é bom Rapaz…

____________
*Publicado originalmente no Jornal de Sesimbra.

7 comentários:

  1. - Era sempre com muita satisfação que o meu pai, me dava a conhecer as crónicas do seu saudoso amigo Tó Manel.
    - No dia do seu desaparecimento, vi o meu pai pela ultima vez chorar como criança.
    3 meses depois, o Fernando Viola partiu de repente e sem se despedir, foi para perto do seu amigo.
    - Sempre que lia o que o seu amigo escrevia, completava, com mais umas quantas recordações.
    Ler todas estas crónicas, faz-me ainda sentir mais saudades, do meu pai, que não voltará já mais a descrever as recordações da sua juventude, nem do Tó Manel, que tanto deixou por contar.
    - Por ultimo, gostaria de ler(se possivel, claro!) essa carta, que pelo que percebo foi publicada do "Jornal de Sesimbra" e que como esta inicialmente refere, foi dirigida ao meu pai.

    Simone Viola Coelho

    ResponderEliminar
  2. Enquanto existirem estes textos o António Manuel continua connosco... e os livros são eternos!

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

    ResponderEliminar
  3. um bom momento para conhecer melhor o Tó Manel e o Gagica Rapaz...

    e ele está aqui, sim, com um sorriso para cada um de nós.

    ResponderEliminar
  4. (até o "bloguer" lhe presta homenagem, a "senha" que me calhou era CAGISM...)

    ResponderEliminar
  5. O tempo não me deixou conhecer (como gostaria) o Tó Manel.
    Permitiu-me, sim, dialogar longamente, à distância, com o "Carteiro", na forma de comentários que fomos trocando de blogue para blogue durante alguns breves anos.
    Só em 2008 e perto do Natal tive a honra de estar pela primeira vez frente a frente com o Gagica.
    Pelo caminho, "apareciam-me" frequentemente os mais variados personagens:
    "Feit'ó Bife", "Impaciente Inglês", "Óscaravelho", "Valentino Loireiro", "Choco à Pé Descalço", "Correio-mór", "Correio Extraviado", "Gregório Peco", "Diogo Elefante", "Carlos Castrinho", "Al Truísta", Al Drabão", "Al Mirante", etc, etc, etc... eram às dezenas...
    Todos impagáveis e absolutamente estimulantes para quem ia escrevendo umas linhas despretenciosas.
    A falta que todos "eles" me fazem, não a consigo exprimir em palavras.
    Muito menos a ausência do homem íntegro e encantador cuja companhia nos foi roubada, inesperada e imperdoavelmente.

    Ontem não me apercebi de que era dia 13 mas, por alguma razão desconhecida, passei parte da tarde e princípio da noite a reler, com um sorriso e muita saudade, os comentários que ficaram nas caixas dos meus dois blogues.
    Foram, garanto, umas horas muito bem passadas.
    E agora, ao abrir o computador, apercebi-me de que tinha deixado passar a data sem ter posto um comentário nesta página de que tanto gosto.
    Mil perdões, Mestre!
    Desculpas também ao meu caro Escriba pela minha ausência dos últimos tempos.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

    ResponderEliminar
  6. As minhas saudações a todos os amigos que, ontem e hoje, aqui vieram depor a homenagem das suas palavras. Relevo a contumácia da Ana e prometo (salvo algum imprevisto) aqui publicar, na próxima semana, a carta de que fala Simone Coelho e que o Tó Manel (ou seria o Cagica Rapaz?) escreveu ao senhor seu pai.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

    ResponderEliminar
  7. Agradeço, pedindo desde já desculpas pelo lapso, mas envolvida nas palavras do texto acabei por não me aperceber da troca de nomes.

    Obrigado escriba.
    Simone Viola Coelho

    ResponderEliminar