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quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 35



E agora?*

António Cagica Rapaz

- Olhe, já agora, ponha-me aí mais um bocado de fiambre, que a minha filha comeu tudo, só deixou uma fatia.

A senhora ouviu o pedido da freguesa e enquanto cortava as rodelas de chourição e as fatias de queijo ia-nos relatando o que sabia desta tragédia que nos deixou a todos destroçados. Uns mais do que outros, é evidente, porque assim é a vida, assim é a natureza humana. Felizmente, porque senão poucos de nós poderíamos sobreviver a tanto drama, a tanta desgraça que em cada dia acontece por este mundo fora.

- O pior é para os que morreram, coitadinhos. Os que cá ficam, melhor ou pior, com mais ou menos empurrão, hão-de recompor-se. Quem um filho tem não o vai pôr à porta de ninguém – concluiu filosoficamente a freguesa, de lágrimas nos olhos.

Era no domingo de manhã, na praça, onde, apesar do choque e do desgosto, a vida continuava.

Era sincera e visível a emoção da senhora que nos ia dando pormenores sobre as identidades dos pescadores desaparecidos, os parentescos, os laços de família. Havia certa impressão de culpa, certo mal-estar quando, perante um drama tão grande, se pudesse continuar a pensar no fiambre e no queijo, pesar e pagar, o comércio não pára, a vida continua.

Do outro lado da rua moram a Zézinha Nogueira e o Máximo que continuam a chorar a perda da filha, tal como o Rasteiro chora o filho, ambos mortos no mesmo acidente.

Para quem é pior, para os que se vão ou para os que ficam? As opiniões dividem-se, mas ninguém sabe nem é importante saber. Só que é preciso dizer alguma coisa, é preciso procurar explicações, consolação, derivativo, réstias de esperança no meio da tragédia.

A morte toca-nos a todos mas a cada um de modo diferente, fundamentalmente consoante a proximidade afectiva, primeiro, e física, depois.

O mar já levou muitos filhos de Sesimbra, mas nunca levara tantos de uma só vez. A morte é sempre medonha e cada um reage como pode, como consegue, como sabe, como é capaz. Quando perdemos um ser querido a morte agride-nos, ameaça-nos, destrói-nos, torna-nos frágeis, deixa-nos indefesos, enfraquece-nos, coloca-nos à beira do abismo. Por isso há quem feche os olhos, recue, fuja, se endureça, se desfaça, se desintegre, chore com e sem lágrimas, se consuma por dentro, aos poucos, lentamente.

Mas uma morte ainda nós podemos compreender, conseguimos imaginar, perceber. Mas vinte, meu Deus!

Ficamos a olhar o mar, aqui, mansinho, à beira da Fortaleza e não percebemos, não acreditamos, não conseguimos realizar. Não foi aqui, foi lá longe, em Marrocos, eram vinte homens, amigos, companheiros, vinte irmãos, vinte, como foi possível?

Os nossos pescadores juntam-se em grupos em frente ao mar, ouvem, contam, e repetem, o que sabem, o que julgam saber, o que a memória antiga lhes deixou, o ciclone, outros vendavais, mas nada, nada é igual a esta monstruosidade dilacerante.

Os homens falam e olham para o mar, este aqui, o nosso, como que à espera que ele revele alguma coisa, explique o inacreditável, se justifique, peça perdão.

A guerra por esse mundo faz milhares de vítimas todos os dias. Outros dramas terríveis chegam ao nosso conhecimento, centenas de mortos, há tempos, no afundamento de um barco, algures no mar do Norte. Abriu-se a porta da frente por onde entram os carros e o barco enfiou-se mar abaixo, vertiginosa e abruptamente, na negridão da noite. Morreram largas centenas de pessoas, foi um horror, mas um horror longínquo porque foi não sei onde no norte da Europa e não conhecíamos uma só das vítimas. O telejornal mostrou logo a seguir uma passagem de modelos ou os jogos do campeonato italiano. Nós, durante uns segundos, dissemos “ai coitadinhos, que coisa horrível” e depois passámos a outro assunto. É assim, é natural, não podemos sentir na carne cada uma das mil desgraças que acontecem a cada instante no Mundo.

Mas agora foi aqui, foram os nossos amigos, os nossos familiares, os nossos vizinhos, vinte, da nossa terra, da nossa gente. É o horror e a incompreensão.

No ano passado, em desastres de viação, terão morrido cerca de uma dezena de jovens do nosso concelho, dois irmãos de motorizada, dois amigos de automóvel, dois de cada vez.

Não há peso nem medidas, graus nem escalas na dor, no sofrimento das famílias e amigos. Não há dores maiores ou menores, cada um é que sabe, ninguém pode comparar nem (ainda menos) estabelecer hierarquias.

Mas em certos casos as pessoas são levadas a esboçar tentativas de explicação. No caso dos desastres lamentam, sofrem, mas acabem por admitir que houve porventura (mais ou menos) imprudência, inconsciência ou gosto pelo risco. Não é uma condenação póstuma, não será recriminação maldosa, é apenas a necessidade que temos de compreender, de explicar, de perceber e até de desculpar ou consolar.

Nisso também este drama foi excepcional, não houve imprudência nem erro de manobra, foi uma calamidade incontrolável, imprevisível, devastadora, crueldade cega e inexplicável.

Onde estava Deus naquele momento? Como foi possível? Será que a protecção do Senhor das Chagas não chega tão longe?

Os órfãos, as viúvas, os parentes, os amigos, não sabem, não pensam, só sofrem.

A loja do Ginja é ali na Galé, a barca do Ginja era uma família, foram ao mar e não voltaram.

Da Galé avista-se o mar sem fim e desta vez o mar foi o fim, um fim monstruoso. E nós não percebemos, só choramos.

O mar levou tudo, levou-os todos, nem um corpo devolveu para um beijo derradeiro. Só ficam a dor e a saudade.

Chorava aquela mulher, sinceramente, mas lá foi pedindo fiambre para a filha. É assim, é a vida que continua para os que ficam.

E agora? Como vamos viver? Como vamos olhar para o mar? Como vão os outros pescadores olhar para o mar, este, o nosso, aqui, o dos Açores, o assassino de Marrocos?

Como vamos olhar uns para os outros? E, sobretudo, como vamos olhar uns pelos outros, pelos órfãos todos que são os que ficaram? Os que ficaram vivos, os que ficaram em terra, os que ficaram sem pai, sem filho, sem marido.

E Deus onde estava? Explique-lhes, senhor padre, eu bem gostaria, mas não sou capaz.
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* Publicado na edição de Janeiro de 1995 de O Sesimbrense. António Cagica Rapaz refere-se nesta crónica à tragédia do Menino Deus, embarcação sesimbrense que havia naufragado no início daquele mês, ao largo de Marrocos.

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