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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 33




Vítor Batista

António Cagica Rapaz

O sol iluminava a baía de Sesimbra e os nadadores lançavam-se à água lá no Caneiro tentando acertar o ritmo da braçada na travessia anual organizada pelo Clube Naval.

O Alfredo Filipe, no seu estilo pujante e elegante, deslizava como um golfinho, embora soubesse que o vencedor seria o Vaz Jorge ou outro especialista do Algés e Dafundo. A travessia da baía era a única prova grande e uma bela festa na nossa terra, com o Zé Brás de megafone em punho, as barcas e as aiolas enfeitadas, o almoço colorido no Hotel Espadarte. Havia quem alinhasse à partida, nadasse até à Califórnia e desistisse, garantindo assim um lugar, se não na meta de chegada, pelo menos à mesa do almoço...

Era o Verão calmo e quente, numa Sesimbra tranquila. E era o defeso do futebol. Porém a febre da bola subia nessa maré de tréguas e o Desportivo organizava torneios populares que apaixonavam a vila e revelavam talentos. Clubes de bairro, rivalidade de rua, orgulho, paixão, Marítimo, Malta Brava, SAC, Horta, Espadarte, Albano, Bacalhau, Zé Barbeiro, Gato, Hélio, Manel Rosa, Zé António e Vítor Batista.

O primeiro com equipamentos a rigor e pretensões a bordo foi o Espadarte, sob o impulso do Vítor Batista. Na família, jogador a sério fora o irmão, o Zé, belíssimo avançado-centro, rápido, ágil, hábil no jogo de cabeça, que poderia ter feito carreira se não tivesse perdido o controlo e agredido o árbitro, num jogo com o Seixal.

Prematuramente privado da competição oficial, o Zé Batista saltava de contente e marcava golos em série com a camisola do Espadarte, onde pontificava o José António, excelente defesa central que a burocracia não deixou ir mais longe. Na baliza, o Palhete, o elegante Cardim, abria a boca e exibia um estilo inconfundível, enquanto o dinâmico João Pedroto varria o meio campo. Mas o maestro era o Vítor Batista, de bigode à Germano e entradas, de cabelo, à Vasques.

Assim nasceu para o futebol este Vítor que haveria de envergar, durante muitos anos, a camisola do Desportivo, com o número onze nas costas e a braçadeira de capitão. Estava o Sesimbra na terceira divisão e o Vítor armava jogo na esquerda, acabando sempre por centrar para a cabeça demolidora do Zé Serafim.

As finais com o Farense foram autênticas epopeias, partidas de arrasar que culminaram com uma negra em Beja. O Desportivo venceu por um a zero, golo do Vítor Batista. Era a subida à segunda divisão, a festa durou dias. Os peixes estranharam a ausência de barcos e ninguém lhes explicou que Sesimbra estava em delírio...

Durante anos, o Vítor Batista foi o cérebro de uma equipa onde o Fragata era um leão. Como tantos amadores, o Vítor não se considerava um jogador da bola como os que aparecem nos jornais. Depois dos treinos, retornava à sua mercearia e voltava a ser o cidadão anónimo, leitor interessado dos jornais desportivos, todo ele paixão ingénua e sincera. À segunda-feira, o Vítor já não era o capitão do Desportivo mas o sócio do Benfica que criticava o árbitro que roubou um penalty ao seu clube. E falava do Eusébio com a admiração de qualquer profano que nunca calçou botas de futebol. Regularmente, ia à Luz ver o glorioso, com o Hélio e os outros, repartia-se entre o Desportivo, a mercearia, as piadas do Gil e os ditos do Zé Barbeiro, lagarto até às patilhas.

Depois de uma dessas partidas europeias, o Vítor regressou a casa, cansado. E, nessa noite, morreu, suavemente, discretamente, como vivera, menos de quarenta anos.

O Benfica continua a jogar, o Sesimbra já desceu e voltou a subir à segunda divisão, a bola não deixou de rolar. O Gil deve sentir-lhe a falta em cada segunda-feira de manhã, na altura do rescaldo da jornada.

O Vítor Batista saiu do futebol e da vida com a discrição e a humildade com que comandava o Espadarte nas tardes quentes de um Verão que vai ficando longe na memória e na saudade...

1981

1 comentário:

  1. mas um excelente relato humano, cheio de gente, da boa...

    pelo título pensei que se tratava do homónimo do Vitor, o de Setúbal, que também partiu cedo demais, mas de uma forma menos tranquila...

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