__________________________________________________________________

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 31


A “ténica” e a pertinácia

António Cagica Rapaz

A paixão pelo futebol exercia-se em dois planos, um virtual, na esfera distante da primeira divisão, outro real, ou seja, a modesta competição regional e bairrista. Por outras palavras, gostar do Benfica não impedia a paixão pelo Desportivo, sofrer agarrado ao transístor não significava desprezo pelo despique renhido dos nossos rapazes contra o Costa da Caparica ou o Ginásio de Cacilhas. Aquela era outra paixão, vivida à distância, através dos jornais, da rádio e, a partir de 1957, da televisão.

O futebol é um encontro, não só para os que jogam mas, igualmente, para os que vibram com ele, os que, naquele tempo, o acompanhavam, que se reuniam nas lojas de companha, no muro, nas tabernas, nos cafés, para falar de bola. Era assim e era apaixonante...

O meu primeiro barbeiro foi o Zé Carapinha, belenense convicto, na minha fase azul, da rua da Fé e do Chico da Cooperativa. Mais tarde, transferi-me para o Central e para a polivalência do mestre Adelino. Para a estudantada do Costa Marques, a taberna do mestre Adelino era ponto de reunião obrigatório para as sandes do Lopes, a consulta de “A Bola”, os matraquilhos e a cavaqueira na barbearia. Enquanto manejava tesoura, pente e navalha, o mestre Adelino rapava a nuca (vulgo caldinho) ao Otto Glória, escanhoava os frangos do Costa Pereira e aparava o bigode do Germano. Os fregueses até cediam a vez para ficarem mais tempo a ouvir as apreciações críticas do mestre, na sua linguagem explicada, medida, esclarecedora, definitiva e de certo recorte teatral. Ah, a “ténica”, a bela “ténica” do mestre Adelino! Era a dimensão familiar, o futebol de pantufas, o sermão de pároco de aldeia para a meia dúzia de fiéis com as quotas em dia.

Paralelamente, ilustrava-se outro mestre, Alves dos Santos, o primeiro e mais prestigiado comentador de rádio e televisão, que trazia o país suspenso das suas palavras nos breves minutos do “Domingo Desportivo” e, sobretudo, da magia das gloriosas e históricas quartas-feiras europeias. Era a dimensão nacional, milhões de ouvintes e telespectadores, um nome, um estilo, sempre a palavra exacta, o rigor, a ciência de um comentário desenhado num português irrepreensível e de cunho muito próprio. Ah, a pertinácia, a bela pertinácia do mestre Alves dos Santos. Na vastidão do seu vocabulário cuidado, vernáculo, escorreito e inconfundível, “pertinácia” ficou como um símbolo de erudição, de originalidade, de requinte literário, figura de estilo muito pessoal que suscitava alguma estranheza, talvez, mas, sobretudo, admiração. Equivalia a assinatura reconhecida.

Não sei se alguma vez os fregueses do mestre Adelino terão estabelecido este paralelo entre os dois comentadores, o da capelinha da barbearia e o da catedral da televisão. Não sei se o mestre Adelino terá, aqui ou ali, aparado as patilhas de Alves dos Santos, agastado por alguma referência menos abonatória para o seu Benfica.

No fundo, eram dois comentadores, cada um com a sua dimensão, a sua audiência, o seu perfil, a sua bagagem, diferentes, mas, ao mesmo tempo, comparáveis, parecidos, no gosto e no talento para a comunicação, no conhecimento, no dom da palavra e na seriedade da opinião. Um à escala da barbearia, outro no plano nacional, mas a mesma paixão, a mesma convicção, a mesma intenção didáctica.

Por vezes imagino como teria sido um diálogo entre eles. Certamente saboroso como foi aquele inesquecível almoço com o António Casa Pia, outro comunicador admirável.

Talvez o mestre Adelino, com um sorriso prazenteiro, tivesse perguntado:

- Então, senhor José, como vamos de pertinácia?

Alves dos Santos teria sorrido, com o seu ar sereno, e respondido, com bonomia:

- Menos mal, mestre Adelino, questão de hábito, por certo, mas também questão de “ténica”...

1995

1 comentário:

  1. Cá temos três Mestres.
    Sem o que escreve não teríamos o gosto de conhecer as particularidades dos outros dois...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

    ResponderEliminar