__________________________________________________________________

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 30



Charuto
António Cagica Rapaz
“Já cá devia estar!”. Mas não estava porque ninguém adivinhava a que horas o Rafael entraria no café do Alfredo, muito embora os filhos da noite estivessem habituados a vê-lo chegar por volta das duas da manhã. Colocava o livro das quotas sobre a mesa e, mesmo que estivesse muito calor, nunca tirava o boné.

Homem estranho, o noctívago mais acordado de Sesimbra, nunca dorme mais de três horas por noite. Recebia as quotas do Desportivo sem precisar de perguntar o número de sócio, tinha tudo de memória. Não sabe ler manuscritos, só letra de imprensa. O rosto magro, a cor macilenta de quem vive de noite, Charuto era já a alcunha do pai. Come pouco, só bebe cerveja, joga cartas com arte, é hábil de mãos, ágil de pensamento, fino na observação. Podia ter aprendido muito mais do que os números dos sócios, mas nasceu em berço pobre. Este autêntico morcego só morrerá quando se deitar às horas dos outros mortais.

Nas longas noites de Inverno, quando os turistas vão morrer longe, o Alfredo senta-se na nossa mesa e, às cinco da manhã, ainda falta contar muita coisa de um passado que nada tem a ver com a Sesimbra by night. Quando a tempestade se faz ouvir é só nossa, não é para turista ver. E vamos beber a última cerveja no muro, ver as ondas fustigarem a muralha, enchendo-nos de espuma. Aquele mar é nosso, é o mar que o Gilberto cantou. E o Gilberto era um grande amigo do Rafael...

1980

2 comentários:

  1. mais um excelente retrato humano, do Rafael, quando era comum conversar...

    ResponderEliminar
  2. Faço minhas as palavras do Luis.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

    ResponderEliminar