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sexta-feira, 12 de novembro de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 28

as crónicas da Eventos....


Gente do campo*

António Cagica Rapaz

Os chamadores já iam no segundo sono quando a tia Amália se preparava para nos despertar, pelas cinco da manhã. Na realidade, tanto a minha irmã como eu estávamos de olho bem aberto, ansiosos pela alvorada, naquela sublime excitação que nos assaltava sempre que se tratava de abalar para as férias grandes nas Caixas.

Atravessávamos uma Sesimbra vazia, no lusco-fusco silencioso, carregados com as malas, com o coração a palpitar de ansiedade, passo cauteloso mas apressado, como se receássemos ver recusado, no último instante, o visto de saída. No largo da igreja de cima, à porta do “Chico da Cooperativa”, o Pintassilgo esperava por nós para pôr a trabalhar a velha “Panhard” que nos levava penosamente Santana acima para depois contornar o posto da Polícia e se lançar desaustinadamente na recta das Covas da Raposa a caminho do Zambujal onde se começa a descer rumo às Caixas.

Como um náufrago que avista terra, assim nós ficávamos febris quando descíamos na paragem em frente à taberna do Baratinha. Atravessada a estrada, lá estavam o eterno palheiro com a roda de carroça arrimada, e o galo do tio Meano que nos dava as boas-vindas enquanto aguardava o primeiro raio de sol para encher a peitaça e a manhã com o seu cantar triunfal. Era outro mundo, era um deslumbramento, estávamos nas Caixas.

A nossa casinha era modesta e, como as outras, tinha o chão de terra batida, não havia água corrente nem luz eléctrica. Mas havia o poço da Quinta, havia estrelas e uma lua redonda e branca. Tudo era perfeito, foi um tempo muito feliz…

Num raio de vinte metros, contávamos com quatro fornos onde os nossos vizinhos e amigos coziam alternadamente o pão, aquele bendito pão do campo que nos habituámos a considerar um bem precioso e prova tangível da existência de uma entidade superior que regulava a Natureza, concedendo a chuva, acendendo o sol, fertilizando a terra, prodigalizando o trigo, abençoando a farinha.

O Pintassilgo dava meia volta em Alfarim, parava de novo à porta do Baratinha e arrancava rumo a Sesimbra para só regressar ao fim da tarde, quase ao sol-pôr, para trazer o meu pai, vindo do Alfeite, imponente na sua farda branca, para meu contentamento e orgulho. Muitas vezes eu não podia estar à espera dele por me encontrar nos Torrões ou noutro sítio, empenhado nas mil tarefas que partilhava com o Julinho, sob o olhar atento do pai Júlio ou do tio Justino. Era com prazenteiro entusiasmo que começava o dia recolhendo ovos já postos ou enfiando o dedo no orifício adequado das galinhas para detectar a proximidade de nova postura. A seguir, aparelhava e dava de beber à “Boneca”, a mansa mula do tio Justino, mas nunca ousei aproximar-me da escultural “mulata”, a mula preta do tio Júlio que tinha tanto de bela como de brava. Nos Torrões, regávamos os talhões das couves, nabos e cenouras, com a água tirada à picota pelo tio Júlio, antes de brincarmos no ribeiro que desagua na praia do Meco.

Entre outras coisas, amassávamos a comida dos porcos, cavalgávamos o trilho da debulha, vindimávamos e ajudávamos a pisar a uva, juntávamos a camarinheira para aquecer e perfumar o forno e íamos ao moinho trocar um saco de trigo por outro de farinha. Esta era a missão mais nobre e apetecida. Íamos no burro, um à frente, outro ao rabicho e era com curiosidade e receio que nos aproximávamos daquele local misterioso, lá no alto, as velas gigantescas e ameaçadoras, o vento a uivar nos vasos de barro com um furo no fundo e, por fim, o milagre branco da farinha que trazíamos para casa, felizes e orgulhosos.

Ao longo daqueles meses de vida partilhada, eu sentia-me igual ao Julinho, éramos como irmãos, vivíamos ao ritmo do sol, em total intimidade. Os dias nos Torrões constituem uma recordação maravilhosa, era um cantinho do paraíso, com a água puríssima da fonte, um ribeiro de brincar com as rãs enquanto armávamos aos pássaros até a tia Clarisse gritar para irmos comer a sopa de pão, batatas, tomate e ovo. À sexta-feira, voltávamos tarde para casa, a pé, atrás da carroça carregada com a venda que iam levar a Almada ou ao Seixal. Cansados e mal dormidos, abalavam a meio da noite, para uma interminável viagem, por uns magros tostões. Conhecendo bem a dureza da vida no campo, revoltava-me, por vezes, na praça de Sesimbra ao ver algumas pessoas regatearem o preço do que representava tanto sacrifício.

Desse tempo ficou-me uma enorme admiração por esta gente trabalhadora, agarrada a valores, rica de conhecimento e sabedoria, carregada de malícia, temente a Deus e amante da Natureza. Gente que vive a dois passos de Sesimbra e que consegue ser diferente, na maneira de falar, de pensar, de encarar a vida, de agir.

Tenho a felicidade de ter nascido na borda d’água, na rua dos Pescadores, e de ter partilhado a vida das pessoas do que nós chamamos o campo. Tenho agora a sorte de possuir um cantinho na Aiana onde reencontro o cheiro da terra e do pão, o chilrear dos pássaros e a ilusão de que nada mudou. De vez em quando, ainda passa uma velhinha montada num burro que deve ser o último que resta e que me parece o mesmo que nos levava ao moinho, a mim e ao Júlio que mora ali adiante, em frente à escola.

É bom estar na Galé, a ver o mar. Igualmente bom é estarmos com os nossos amigos, a nossa gente que, muitas vezes, é gente do campo…

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* Publicado no nº 32 de Sesimbra Eventos, de Agosto/Setembro de 2004.

5 comentários:

  1. Ai doces, doces memórias da nossa infância!

    Volto a dizer: é mais uma tela pintada por um talentoso Artista.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. mais um registo tão vivo, tão presente.

    (olá Ana, um beijinho para ti)

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  3. Peço licença ao venerável PM (que, infelizmente, não significa "Primeiro Ministro") para retribuír, aqui, o beijinho ao Luis.

    Actualmente, este é o único blogue em que eu ainda deixo comentários...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  4. Que sorte tem Sesimbra!
    Quantas terras de Portugal podem apresentar a sua história recente narrada em crónicas tão vivas?
    Duvido que existam!

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  5. Caríssima Ana,

    Mal seria se fosse mister a emissão de uma licença osculatória. Daqui, também, um beijinho para si e abraços renovados ao Luís Milheiro e ao Impaciente...

    PM

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